A ferida de 1950, a revanche de 2014 & o silêncio dos Barbosas

Artigo :: Maurício Pássaro

Está lançada a ideia de que 2014 é a chance de o Brasil vingar a “injustiça” que foi 1950. Duas copas sediadas pelo país, seis décadas à espera de uma revanche. Não estamos querendo pouco. Não se trata apenas de conquistarmos o Hexa e ficarmos no podium do ranking mundial. Se então falamos de dois Brasis diferentes, uma diferença é bem emblemática: o silêncio de outrora e o barulho de hoje.

Barbosa de 1950
Quem esteve lá, num Maracanã recém-inaugurado, soube o que é sair de um estádio em silêncio obsequioso, como a deixar o triste funeral de um grande amigo. Nenhuma palavra nesse instante é apropriada, qualquer comentário pode soar como blasfêmia, nada repara o vaticínio da morte. Jovens tentam retrucar algum consolo, que logo é reprimido pelo olhar carregado de experiências de um mais velho, mais vivido. E milhares de pessoas pensando no goleiro Barbosa (o Rio de Janeiro comportava um pouco mais de dois milhões de habitantes). Nessa hora, o culpado é o goleiro. Barbosa foi até arguido, pela polícia secreta, se era comunista e estava fazendo o jogo da URSS, pois o mundo vivia sob os ditames ideológicos da Guerra Fria. O goleiro já se foi, mas sua alma aflita certamente espera por essa revanche para descansar em paz. É mais um peso nas costas da seleção. O Barbosa de 1950, com sua falha na defesa, fez um país se calar.

Mas, o Barbosa de 2014 faz o Brasil gritar. O Ministro do STF anuncia que vai pendurar as chuteiras, aposentar-se, depois de enquadrar políticos e empresários como ninguém até hoje ousou. Lula o indicou, e sua atuação no processo dos mensaleiros serviu para as hostes o tacharem de “traidor”, numa inversão incrível: quem afinal traiu a República? Na seleção do poder público, ele defendeu todas as bolas do adversário. Teve que espalmar cada bola jogada em ângulos difíceis de alcançar. Mesmo sendo um magistrado, não era o juiz da partida – esta é uma função que coube à Carta Magna. Joaquim Barbosa obteve a vitória do reconhecimento popular, após vencer uma vida de dificuldades e preconceitos. A cada defesa espetacular, o grito clamoroso de uma população já cansada de ver a impunidade sobre os “grandes”.

Barbosa de 2014
E agora, quando ele sai, depois de sofrer ameaças visíveis de morte, este Barbosa de 2014 provoca o mesmo silêncio respeitoso, que é diluído em grandes proporções. Um silêncio que na verdade faz muito barulho, que no fundo é o sentimento de um vácuo. E agora? Como ficaremos sem ele? É o que perguntamos pelas mídias sociais. Porque este é o lugar onde ainda se pode protestar, de alguma forma, com liberdade. Digo “ainda” porque não sabemos o que virá com a instalação dessa coisa chamada Marco civil da internet (o que deveria ser feito é um “marco civil no aperfeiçoamento dos servidores da web”, que nunca funcionam bem. Mas, a proposta da rede, da liberdade, o que há de errado com ela?).

O Barbosa de 1950 é do tempo do Nelson Rodrigues, tão citado hoje pela presidente da República. Mas, a ministra Marta Suplicy já havia também usado o mesmo discurso manipulando as palavras do dramaturgo, quando disse sobre o estupro: “se for inevitável, o melhor é gozar e relaxar”. Outra figura pública, Joana Havelange, chegou perto, quando disse que “o que havia para ser roubado (na Copa) já foi...” A presidente afirma, em tom provocador, que aqueles que agora protestam na hora do jogo “tomarão suas cervejinhas e torcerão”. Ou seja, diante de um estupro bilionário nas contas públicas, de uma sangria dos recursos que poderiam salvar a saúde e a educação pública para se montar a maior das copas, o que nos resta a fazer?

O Joaquim de 2014 deixa o campo vitorioso, com a missão cumprida. Sai como herói, pois não desejava sair como mártir. Serviços da inteligência devem ter orientado o ministro sobre planos de execução em andamento. Vitorioso sobre seu próprio currículo, uma vida de trabalho e dedicação, onde teve certamente que vencer os preconceitos mais básicos (assim como o outro Barbosa) que, sabemos, urde ainda no silêncio da hipocrisia e da desfaçatez. Ele é o Barbosa-Ômega, que redime e resgata o Barbosa-Alfa. Este deixou o Brasil em silêncio, mas aquele suscitou a indignação de brasileiros e os pôs gritando nas ruas por justiça, pela simples execução das leis, pela mera realização dos serviços públicos. Um ciclo se completa com sua saída.

E se o Brasil vencer a Copa...? O barulho vai ser grande, claro. Mas, tão logo passe o estardalhaço, depois do gozo e do relaxamento, teremos de ver que filho foi gerado com o estupro.





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