Marcelo Bessa / Da série "O Diário de Rampion"
Era fim de mês e eu estava sem dinheiro como sempre. Nessa época, embora com um inglês meio capenga, trabalhava na "Hertz" - uma locadora de automóveis, para executivos, multinacional - como motorista. Ao contrário da Locarbrás - meu primeiro emprego nesse ramo - não conseguira adaptar-me bem à empresa americana. Na brasileira eu estava entre os brasileiros, nós nos entendíamos. Na "Hertz" o pessoal era meio esquisito; havia alguns colegas estrangeiros, entre os quais dois irmãos gêmeos russos, cujos bisavós, segundo seus próprios relatos, eram foragidos da revolução bolchevista; um deles, aliás, muito puxa-saco, não gostava de mim e ainda por cima pediu-me um empréstimo logo no meu primeiro mês de trabalho e nunca mais saldou a dívida. Contara-me uma mentira: que o filho menor quebrara uma jarra caríssima na casa de alguém e que não tinha como pagar o estrago. Mais adiante, disseram-me que ele tinha o hábito de pedir dinheiro a todo mundo, contando sempre alguma história. Preferi esquecer o assunto, ou melhor, a dívida. Afinal, acalentando, na minha ingenuidade, sonhos de grandes realizações (eu me julgava um ser muito especial), não tinha tempo nem estômago para fazer cobranças de caraminguás a um indivíduo necessitado. E ainda por cima mentiroso. Entretanto, para compensar o fato de que meus colegas de trabalho eram muito desinteressantes, certo dia apareceu um novo funcionário. Era americano, franzino, cabelos pretos e um tanto ralos, inteligente, porém, com um jeito de débil mental. Contrastava gritantemente com os outros americanos. Parecia mais um brasileiro. Inclusive no jeito de ser esculhambado e meio indolente. Chamava-se Donald. Certa vez, conversando com ele animadamente, depois de termos ambos deixado nossos clientes no aeroporto e feito as entregas dos carros na garagem da firma, saímos para jantar. Reunimos os nossos tostões e verificamos que dariam para comermos uma pizza média. Propus-lhe irmos a um restaurante bem perto, na rua do Catete, cujo nome eu não lembro e nem sei se ainda existe.
Uma pizza média para dois homens esfomeados era pouco, mas, conformados, fomos saboreando bem devagar a iguaria. Nesse ínterim, senta-se uma mulher bem perto de nós. Nossa pizza já terminara e ficamos os dois ali conversando. Alguns instantes depois o garçom trouxe uma pizza enorme, suculenta, para a mesa ao lado. A moça solitária começa a comer delicadamente, muito delicadamente, levando pequeninos pedaços à boca, mastigando-os devagar. Donald, esfaimado e irreverente, faz um comentário, iniciando-se logo um diálogo entre nós dois:
__ Do you think she can eat it all? (Você acha que ela pode comer tudo?)
__ I don't think so. (acho que não.)
__ Let's ask her a piece. (Vamos pedir-lhe um pedaço.)
__ I don't know. (Não sei.)
__ God, I'm hungry! (Deus, estou faminto!)
__ Look at that big mouth. (Olha aquela boca enorme.)
__ What a big mouth. (Que boca enorme.)
Íamos assim os dois conversando, rindo muito, enquanto a mulher, impassível, continuava mastigando vagarosamente a pizza. Lembro-me de ter dito que o mundo era injusto: __ It's not fair! (Não é justo!)
Num determinado momento a mulher pediu a conta. Com os olhos compridos, vimos que ela deixara três quartas partes da pizza intactas. Aí nossa fome aumentou. Efetuado o pagamento, o garçom, como é natural, fez menção de recolher a bandeja com o resto da pizza, mas a mulher lhe disse:
__ Um momentinho. Levantou-se, segurando a bandeja. Veio até a nossa mesa e gritou:
__ Now you can have it! (Agora vocês podem tê-la)
Ato contínuo, atirou a bandeja em nossa mesa com estardalhaço e retirou-se batendo os saltos dos sapatos com força no chão. Donald que era um cínico, já ia atacar a pizza, quando eu, brasileiro e subdesenvolvido, de maneira ríspida, dei ordem ao garçom para que retirasse a bandeja de nossa mesa.
Alguns dias depois, de volta aos trabalhos, Donald ainda se mostrava inconformado por não ter comido o resto que a mulher nos atirou. Eu me limitava a dizer:
__ Forget it. (Esquece.)
Era fim de mês e eu estava sem dinheiro como sempre. Nessa época, embora com um inglês meio capenga, trabalhava na "Hertz" - uma locadora de automóveis, para executivos, multinacional - como motorista. Ao contrário da Locarbrás - meu primeiro emprego nesse ramo - não conseguira adaptar-me bem à empresa americana. Na brasileira eu estava entre os brasileiros, nós nos entendíamos. Na "Hertz" o pessoal era meio esquisito; havia alguns colegas estrangeiros, entre os quais dois irmãos gêmeos russos, cujos bisavós, segundo seus próprios relatos, eram foragidos da revolução bolchevista; um deles, aliás, muito puxa-saco, não gostava de mim e ainda por cima pediu-me um empréstimo logo no meu primeiro mês de trabalho e nunca mais saldou a dívida. Contara-me uma mentira: que o filho menor quebrara uma jarra caríssima na casa de alguém e que não tinha como pagar o estrago. Mais adiante, disseram-me que ele tinha o hábito de pedir dinheiro a todo mundo, contando sempre alguma história. Preferi esquecer o assunto, ou melhor, a dívida. Afinal, acalentando, na minha ingenuidade, sonhos de grandes realizações (eu me julgava um ser muito especial), não tinha tempo nem estômago para fazer cobranças de caraminguás a um indivíduo necessitado. E ainda por cima mentiroso. Entretanto, para compensar o fato de que meus colegas de trabalho eram muito desinteressantes, certo dia apareceu um novo funcionário. Era americano, franzino, cabelos pretos e um tanto ralos, inteligente, porém, com um jeito de débil mental. Contrastava gritantemente com os outros americanos. Parecia mais um brasileiro. Inclusive no jeito de ser esculhambado e meio indolente. Chamava-se Donald. Certa vez, conversando com ele animadamente, depois de termos ambos deixado nossos clientes no aeroporto e feito as entregas dos carros na garagem da firma, saímos para jantar. Reunimos os nossos tostões e verificamos que dariam para comermos uma pizza média. Propus-lhe irmos a um restaurante bem perto, na rua do Catete, cujo nome eu não lembro e nem sei se ainda existe.
Uma pizza média para dois homens esfomeados era pouco, mas, conformados, fomos saboreando bem devagar a iguaria. Nesse ínterim, senta-se uma mulher bem perto de nós. Nossa pizza já terminara e ficamos os dois ali conversando. Alguns instantes depois o garçom trouxe uma pizza enorme, suculenta, para a mesa ao lado. A moça solitária começa a comer delicadamente, muito delicadamente, levando pequeninos pedaços à boca, mastigando-os devagar. Donald, esfaimado e irreverente, faz um comentário, iniciando-se logo um diálogo entre nós dois:
__ Do you think she can eat it all? (Você acha que ela pode comer tudo?)
__ I don't think so. (acho que não.)
__ Let's ask her a piece. (Vamos pedir-lhe um pedaço.)
__ I don't know. (Não sei.)
__ God, I'm hungry! (Deus, estou faminto!)
__ Look at that big mouth. (Olha aquela boca enorme.)
__ What a big mouth. (Que boca enorme.)
Íamos assim os dois conversando, rindo muito, enquanto a mulher, impassível, continuava mastigando vagarosamente a pizza. Lembro-me de ter dito que o mundo era injusto: __ It's not fair! (Não é justo!)
Num determinado momento a mulher pediu a conta. Com os olhos compridos, vimos que ela deixara três quartas partes da pizza intactas. Aí nossa fome aumentou. Efetuado o pagamento, o garçom, como é natural, fez menção de recolher a bandeja com o resto da pizza, mas a mulher lhe disse:
__ Um momentinho. Levantou-se, segurando a bandeja. Veio até a nossa mesa e gritou:
__ Now you can have it! (Agora vocês podem tê-la)
Ato contínuo, atirou a bandeja em nossa mesa com estardalhaço e retirou-se batendo os saltos dos sapatos com força no chão. Donald que era um cínico, já ia atacar a pizza, quando eu, brasileiro e subdesenvolvido, de maneira ríspida, dei ordem ao garçom para que retirasse a bandeja de nossa mesa.
Alguns dias depois, de volta aos trabalhos, Donald ainda se mostrava inconformado por não ter comido o resto que a mulher nos atirou. Eu me limitava a dizer:
__ Forget it. (Esquece.)
Comentários
Postar um comentário
ITAIPUAÇU SITE - MÍDIA LIVRE E OFICIAL DE NOTÍCIAS DE MARICÁ - O Itaipuaçu Site reserva o direito de não publicar comentários anônimos ou de conteúdo duvidoso. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a nossa opinião.