Artigo: Grilagem transnacional avança na restinga de Maricá

Archibaldo Figueira - Até ser surpreendida pelo súbito alagamento do quintal de sua casa em Itaipuaçu, distrito do município fluminense de Maricá, Márcia Benevides Leal não passava de simples dona-de-casa. A extrema curiosidade pela água acabou por transformá-la em personagem importante do movimento contra a entrega de São Bento da Lagoa, na Área de Proteção Ambiental de Maricá, uma das mais belas regiões do planeta, à Madri-Lisboa, consórcio imobiliário transnacional empenhado na expulsão da população de pescadores artesanais para construir um resort de custo estimado em 8 bilhões de reais.
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Projeto que prevê a ocupação da Restinga de Maricá
Recomendado pela Embaixada de Portugal e a Câmara de Comércio Luso-Brasileira, o consórcio é liderado pelo grupo Dico Harisa Obrum, associado aos espanhóis Avantis (13%), Vancouver (9%) e Cetya (31%). Em  Lisboa, o diretor-geral do grupo, Miguel de Almeida, saiu em busca da clientela para o empreendimento, que apregoa como "adequado à classe média alta e criado para desenvolver a qualidade de vida de uma zona que está muito degradada, sofre com a desordem urbanística, perdeu o encanto em termos de natureza, e que tem carências no setor de serviços".

No Salão Imobiliário de Madri (Sima 2007), Almeida apresentara a um público de 150 mil pessoas o projeto de Maricá: um resort (dois condomínios residenciais, espaço comercial e de alimentação, um campo de golfe para provas de nível internacional, um centro equestre, uma marina para 1.100 barcos e um centro de tênis) para 95 mil habitantes, em um lote de 841 hectares com 8 quilômetros de praia e cinco de lagoa.

O ISOLAMENTO DA POPULAÇÃO

Pouco tardou para que, da noite para o dia, aparecesse uma cancela na rodovia estadual RJ 102 e grande parte da área fosse isolada por arame farpado, enquanto o grupo transnacional (que também atua na Polônia, na Índia, no México e em outras partes do Brasil, como Salvador) prometia a abertura de 40 mil postos de trabalho ao longo dos 10 anos de construção.

Surpreendida, a população do Zacarias, lá instalada há mais de 200 anos, percebeu que a expulsão não tardaria e partiu para o apoio à Associação Comunitária de Cultura e Lazer do Pescadores do Zacarias — ACCLAPEZ. Juntaram-se à luta o Conselho Comunitário de Maricá, o Sindipetro/RJ, Sindsprev Comunitaro , Sindicatos estadual e municipal de professores e entidades comunitárias de vários municípios da Baixada Fluminense.

Em 16 de outubro, na tentativa de ganhar prestígio político, um deputado do PV promoveu audiência pública na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, durante a qual o povo de Maricá recebeu oficialmente a informação de que "não existe nenhum pedido de licenciamento para a construção de resorts no local".

Apesar de todas as negativas reiteradas na audiência pública, na Europa intensifica-se a propaganda do empreendimento, com Miguel Almeida dizendo que, para atender à clientela, o grupo Madri-Lisboa estuda opções como o financiamento bancário, através de grupos locais e associações bancárias.

O diretor do consórcio transnacional asssegura que o licenciamento pelos diversos níveis do governo brasileiro estará concluído ainda este ano, "de forma a começar a vender e ter retorno". Entretanto, nos órgãos oficiais, desde a Prefeitura até o Ministério do Meio Ambiente, só há informações desencontradas ou muito silêncio.

Em sua cruzada por Maricá, Márcia armazenou história de corrupção em ações criminosas praticadas desde 1574, quando Antônio Marins recebeu a primeira sesmaria até a criação da Área de Proteção Ambiental (APA), inclusive a de uma recente viagem à Europa feita pelo vice-governador do estado, o prefeito e oito vereadores, com acompanhantes, a convite da MadriLisboa.

O município de Maricá, segundo ela, já a partir do final da década de 30 teve seu sistema lagunar invadido por gente interessada na retirada de monazita e tório. As terras da região, desde São Gonçalo, eram dominadas por Lúcio Thomé Feiteira, empresário da vidraçaria ligado a Getúlio Vargas, Amaral Peixoto e Juscelino Kubtschek.
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Feiteira operava em estreita ligação com Sebastião Pais de Almeida, fundador da Companhia de Vidros do Brasil (Covibra), e da Vidrobrás Indústrias Reunidas, chegando à presidência do Banco do Brasil, à diretoria do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, tendo ocupado interinamente o Ministério da Fazenda. Em 1963, foi eleito deputado federal e, dois anos depois, o PSD de Minas lançou sua candidatura ao governo estadual. Porém em agosto do mesmo ano os líderes udenistas Pedro Aleixo, Adauto Lúcio Cardoso e José Bonifácio Lafayette de Andrada assinaram um memorial intitulado O assalto ao trem pagador, solicitando à Justiça Eleitoral o impedimento da candidatura de Pais de Almeida por corrupção. Em 12 de outubro de 1966, Pais de Almeida e mais cinco deputados federais tiveram seus mandatos parlamentares cassados e seus direitos políticos suspensos por dez anos pelo Marechal Castelo Branco, com base no AI-2.

Depois da cassação, Pais de Almeida retirou-se da vida pública, morrendo no Rio de Janeiro em 1975, depois de colaborar com Feiteira na preparação do projeto de uma Cidade de São Bento, a cargo do arquiteto Lúcio Costa, nesta mesma área de atuação da Madri-Lisboa. Em 1975, quando começou a terraplenagem, deu-se uma mortandade de peixes que durou quatro anos, extinguindo 200 toneladas somente no primeiro.

Em 1978, o juiz da 5ª Vara Federal, Américo da Luz, responsabilizou pelo "cataclisma ecológico" os governos federal, estadual e municipal (Fundrem, Feema, Ceca, IBDF, Sudepe, DNOS e Embratur, além da Prefeitura) e três empresas particulares, com destaque para a Sociedade de Explorações Agrícolas e Industriais S/A (S.E.A.I.), de Lucio Thomé Feteira. Foi determinada a imediata paralisação das obras da Cidade de São Bento.

Citando estudos dos antropólogos Marco Antônio da Silva Mello e de Arno Vogel, Márcia Benevides destaca que em 1984 o governo Brizola criou uma APA (Área de Proteção Ambiental) naquela parte da Restinga de Maricá:

— Aquilo, entretanto sempre foi motivo de cobiça. Em outubro de 2007 a Prefeitura publicou um novo Plano de Desenvolvimento Urbano, quase um ano depois do cercamento da restinga. Começou mais uma vez a história de destruição do cordão costeiro. Existem ainda por ali ruínas de um prédio, que já foi imponente, com o logotipo "Vidrobrás", que abrigava também a SEAI. Há informações de que seria um local de beneficiamento de monazita para retirada do tório, um mineral radioativo, e o prédio da Vidrobrás apenas um depósito. No inicio da década de 50 o Brasil chegou a trocar navio de tório por navio de trigo. Próximo ao prédio, havia uma estação ferroviária através da qual era feito o escoamento da mercadoria.

A QUESTÃO FUNDIÁRIA

Márcia observa que, para o Brasil, a história da energia nuclear só teve inicio por volta de 1945, mas a exploração da monazita, encontrada em leitos de lagunas costeiras como as de Maricá, levou o governo a deslanchar, em 1905, o processo de demarcação das áreas de beneficiamento (sendo que em 1886 já havia beneficiamento em São Francisco de Itabapoana), delimitando o que pertencia a União como terrenos de marinha.

Em 1920 a tonelada de monazita valia 80 libras esterlinas, preço que despencou graças a grande quantidade mandada pelo Brasil para o mercado internacional

— Onde estão os resíduos do beneficiamento da monazita? — questiona. — Não foi só em Guarapari e na Bahia que retiraram monazita... Hoje é a restinga que garante a sobrevida do sistema lagunar de Maricá, já tão agredido por motivos torpes. Teríamos que discutir a recuperação das lagunas costeiras, mas ninguém quer nada. A imprensa se omite. O governo federal faz ouvidos moucos, como se não soubesse o que é o gerenciamento costeiro. Todo mundo sabe que, para o Brasil conservar a extensão do mar territorial, tem de fazer a conservação da cadeia alimentar. Para isso, é imprescindível a conservação da Restinga de Maricá e manter saneadas as lagunas.

Finalizando, Márcia alerta que a ocupação da restinga aumentará o risco de erosão:

— Aí — aponta — será golpe de misericórdia não somente na lagoa de Maricá, como em todo sistema lagunar, que já vem sendo massacrado e hoje está em coma induzido. Ficaremos até sem água potável. Porém, como as gerências estaduais e municipais são eficientes propagandistas do resort, reforçam todas as mentiras que inventam a respeito. Temos uma comunidade tradicional morando nesta área que vem sendo maltratada e constrangida desde os tempos do Feiteira. Se pesquisarmos mais constataremos que os viajantes do século XIX, que aqui chegaram com a família Real, já encontraram gente morando nas areias. Este problema não é só do nosso município, mas do estado e de todo o Brasil. Onde estão o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, a Advocacia Geral da União? O que se esconde por trás de tudo isto?
Pelos direitos dos zacaeiros

Quando a comunidade de Zacarias se viu cercada pela empreiteira proprietária da restinga o presidente da ACCLAPEZ — a associação comunitária — Vilson Corrêa contou com o apoio do CCM — Conselho Comunitário de Maricá, que agrupa mais de vinte entidades entre associações de moradores, sindicatos profissionais, cooperativas de serviços, professores universitários (UERJ e UFF) e Ongs — que imediatamente começou a organizar documentação para defender os direitos dos zacaeiros, bem como o ecossistema considerando que a área da restinga éPatrimônio Cultural — Comunidade Pesqueira Secular —, Ambiental — presença de vegetações de Restinga, integrante da Mata Atlântica (Reserva da Biosfera) —, Histórico e Arqueológico — sítios arqueológicos, históricos e sambaquis — e Científico — abriga espécies endêmicas e ameaçadas de extinção; a área é uma das mais pesquisadas do país e é referência para os estudos científicos na formação de pesquisadores nas áreas de Geologia /Geomorfologia, Biologia, Geoquímica e Limnologia, entre outras. São mais de 500 trabalhos realizados pos várias universidades, sobretudo pela UFRJ, UFF, UFRRJ e UERJ.

Com o desenrolar das pesquisas, o grupo assessorado por professores da UERJ e da UFF se organizou com o nome Movimento Pró-Restinga que compilou a documentação para que o CCM entrasse com ações no Ministério Público Estadual e Federal, questionando a legalidade de um plano de manejo que transgride leis estaduais e federais, para que não se repetisse em Maricá o que aconteceu nas APAs de Itaipu e Piratininga (Niterói, RJ) em que toda a área foi parcelada não sendo respeitada nem a Faixa Marginal de Proteção ficando a pesca irremediavelmente comprometida em suas lagoas.

O Pró-Restinga está organizando um banco de dados com os trabalhos científicos sobre a área e produziu o vídeo Restinga ameaçada — disponível no Youtube — que será exibido nas praças da cidade para mobilizar a população.

O grupo foi representado por Omar Serrano no Conselho Nacional do Meio-Ambiente (CONAMA) onde o sr Axel Grael, presidente do IBAMA, estranhamente fez defesa clara da instalação do resort quando, oficialmente, não existe sequer pedido de licenciamento do mesmo junto ao órgão.

No mês de agosto o Pró-Restinga ocupou um stand na Expo Maricá — uma feira de negócios e serviços — onde mostrou artesanato com produtos da restinga — taboa, sementes etc — feito pela comunidade de Zacarias, exibiu o vídeo Restinga ameaçada e fotos da área divulgando a luta e agregando apoio de diversos segmentos da sociedade maricaense.
Um decreto 'ilegal’

Em 1984, após a ameaça de desapropriação da Comunidade de Zacarias, o governo estadual criou a Área de Preservação Ambiental de Maricá, abrangendo a Restinga, a Ponta do Fundão e a Ilha Cardosa, contemplada com a proibição total de parcelamento de terras para fins urbanos.

Um Plano de Manejo requer a existência de um Grupo Gestor — SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação instituído pela Lei 9.985), art 15º parágrafo 5º e o decreto 4.340, art 20º, inciso II que determina ser da competência deste Conselho acompanhar a elaboração, implementação e revisão do Plano —, que só está sendo formado agora em 2008.

Em julho de 2007 a CECA (Comissão Estadual de Controle Ambiental) em sua Deliberação Nº 4.854, de 19 de julho de 2007, torna a área mais permissiva de parcelamento e para tentar legitimar esse Plano de Manejo convoca a população para uma reunião pública onde apresentaria o Plano. Mesmo com a pouquíssima divulgação do encontro, o Movimento Pró-Restinga conseguiu lotar a plenária exigindo que o Plano fosse debatido e mostrando, então, os diversos pontos em que este feriam leis federais e estaduais e desrespeitavam os interesses da comunidade de Zacarias. A CECA não conseguiu naquele momento a aprovação do Plano de Manejo e ficou de voltar à cidade, para outra reunião, com um novo texto.

No dia 4 de dezembro o governador Sergio Cabral assina o Decreto 41.048 instituindo o Plano de Manejo para a APA de Maricá tornando seu parcelamento ainda mais permissivo que o da CECA.

O Plano decretado não considera a Lei do Bioma Mata Atlântica — Lei nº 11 428 de 22 de dezembro de 2006 —, artigos 2º, 3º (incisos II, V, VI e VIII); 4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 10º, 11º, 13º, 20º e 30º, assim como o Código Florestal —Lei nº 4.771 de 15 de setembro de 1965 —, artigos 1º, 2º e 3º e o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro — Decreto nº 5.300 de 7 de dezembro de 2004 —, artigos 2º ( incisos IV e XIV), 5 º (incisos IX e X), 6º (incisos I, II e IV) 23º (inciso II, parágrafos 1º e 2º), que atende à convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar da qual o Brasil é signatário.

O Plano de Manejo contêm equívocos graves, como o de considerar a vegetação rasteira (típica do ecossistema em questão) como área degradada, sujeita à ocupação urbana. O mesmo acontece em áreas desprovidas de vegetação, como em alguns campos de dunas, também consideradas como áreas degradadas quando na verdade são características do mesmo ecossistema. Inclui-se ainda que estas duas porções correspondem ao segundo cordão arenoso, que é o mais antigo, logo, um elemento estrutural da feição geomorfológica, além de ser um fundamental aporte de areia para a defesa e equilíbrio da costa do estado do Rio de Janeiro e da Região Sudeste.


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