Marcelo Bessa / da série "O Diário de Rampion" - Eram sete horas da noite e eu acabara de sair do túnel da rua Alice em direção a minha casa em Laranjeiras. Como o trecho ali é muito mal iluminado, enganei-me dobrando à esquerda prematuramente. Ao invés de seguir o curso normal do tráfego, ingressei num caminho que iria levar-me ao Corcovado. Logo dei-me conta do erro e retornei rapidamente, esquecendo-me, entretanto, de que a rua tinha mão dupla. Resultado: bati quase de frente com um motociclista que vinha subindo em sentido contrário.
Formou-se uma faísca enorme quando os dois veículos se chocaram. A motocicleta e o piloto passaram por cima do meu carro estatelando-se o pobre rapaz a uns três metros de distância. A frente do meu carro ficou toda amarrotada. Imediatamente corri em direção ao motociclista a fim de ajudá-lo. A vítima havia partido alguns dentes e, segurando o queixo em meio a gemidos, deu-me a impressão de que fraturara a mandíbula. Com pressa, abandonei meu carro, levando o jovem ao hospital: alguém nos dera carona. Enquanto o motociclista era medicado, liguei para os parentes dele - o número do telefone me fora fornecido pelo próprio rapaz, a meu pedido. Algum tempo depois, o irmão mais velho da vítima apareceu. Relatei-lhe o ocorrido declarando-me inteiramente responsável pelos danos físicos e materiais que porventura o jovem acidentado viesse a sofrer.
Umas duas horas depois saímos do hospital rumando para a delegacia do bairro. Infelizmente não fora possível deixar a polícia fora do acontecimento, embora as partes envolvidas já estivessem de acordo quanto às providências cabíveis. Assim, chegamos à DP, o irmão mais velho, o próprio ferido e eu, o que me pareceu errado e desumano, pois o rapaz continuava a gemer, necessitando, na verdade, de repouso. O irmão mais velho da vítima, convencido de que eu cumpriria a palavra quanto ao pagamento das despesas necessárias, propôs declararmos que tudo não passara de um acidente. A família do motociclista não apresentaria queixa contra mim. Tão logo, porém, entrei na delegacia, comecei a sofrer um processo de achacamento, isto é, uma tentativa de extorsão por parte de alguns policiais de plantão:
__ O senhor compreende, há uma vítima. Aliás, eles afirmam que o senhor foi o causador direto do acidente. O rapaz está muito machucado. Haverá .um processo. É melhor conversarmos. Talvez, dependendo somente do senhor, tudo possa ser arranjado. Sussurrava um inspetor.
À vista, entretanto, do que combinara com os dois irmãos, mantinha-me firme dizendo que tudo acontecera por força de um infeliz acidente, que ninguém tivera culpa. As horas passavam e nada se resolvia. Acredito ter ficado na delegacia, inclusive o pobre rapaz acidentado, umas três horas. Não havia meios de nos liberarem. Depois de muita conversa, ou de várias tentativas de extorsão, resolveram continuar encenando a comédia dizendo que tomariam o meu depoimento por escrito a fim de fazer parte integrante do processo a ser instaurado. Pediram-me que fosse ao andar de cima, longe do burburinho da sala de recepção, acompanhado de um policial corpulento, acaboclado, a quem, aliás, eu conhecia de vista ali do bairro mesmo. Embora sabendo que a teoria lombrosiana perdera a validade científica, não pude deixar de, examinando as feições do meu acompanhante, enquanto ele punha com dificuldade o papel do depoimento numa máquina de escrever, achar que estava diante de um bronco, um simplório, que desejava apenas receber uma propina para livrar-me de eventual processo. Ora, em primeiro lugar, a minha consciência não me permitiria fugir às minhas responsabilidades, pois já havia declarado ao irmão mais velho da vítima que eu fora o causador do acidente. Em segundo lugar, além de estar mal-humorado por ter sido praticamente detido por longo tempo sofrendo um processo torpe de tortura mental, achei ultrajante ser manipulado por indivíduos que, ao invés de dignificarem tão nobre profissão, deslustram-na por cupidez a mais hedionda.
__ Como foi que aconteceu o acidente? Perguntou-me o latagão travestido de autoridade.
__ Dir-se-ia que o móbil da sobrevença decorreu menos da aleatoriedade, algo nebulosa, concernente à imperícia porventura dos partícipes e mais da inelutável consequência das leis reguladoras dos corpos em movimento...
__ Como???
__ ...uma vez que as forças centrípetas de que estavam revestidos os veículos antagônicos, considerando-se a energia cinética também, que não seria um fator despiciendo, teriam sofrido um desvio...
Nesse instante, sem ter acionado uma só tecla da máquina de escrever, o meu distinto interlocutor pôs-se de pé, amassou a folha de papel ainda virgem, atirou-a na cesta de lixo e disse com a voz alterada:
__ Nós queremos é saber quanto você vai dar para se livrar do processo!
Ainda desempenhando o meu papel - o de uma espécie de fóssil que passara a vida toda perdido num laboratório de pesquisas inúteis - disse-lhe, candidamente, que "pagaria, estava claro, uns, vamos dizer, cinquenta contos?". Foi demais para ele: levantou-se, deu-me as costas, saindo da sala batendo os pés com força no chão.
Timidamente, a uma distância aconselhável, desci a escada vagarosamente e entrei na sala de recepção. Em cerca de dois minutos, não mais, estávamos na rua despedindo-nos, enquanto eu prometia avistá-los no dia seguinte para tomar as providências prometidas, a vítima, o irmão mais velho e eu.
Formou-se uma faísca enorme quando os dois veículos se chocaram. A motocicleta e o piloto passaram por cima do meu carro estatelando-se o pobre rapaz a uns três metros de distância. A frente do meu carro ficou toda amarrotada. Imediatamente corri em direção ao motociclista a fim de ajudá-lo. A vítima havia partido alguns dentes e, segurando o queixo em meio a gemidos, deu-me a impressão de que fraturara a mandíbula. Com pressa, abandonei meu carro, levando o jovem ao hospital: alguém nos dera carona. Enquanto o motociclista era medicado, liguei para os parentes dele - o número do telefone me fora fornecido pelo próprio rapaz, a meu pedido. Algum tempo depois, o irmão mais velho da vítima apareceu. Relatei-lhe o ocorrido declarando-me inteiramente responsável pelos danos físicos e materiais que porventura o jovem acidentado viesse a sofrer.
Umas duas horas depois saímos do hospital rumando para a delegacia do bairro. Infelizmente não fora possível deixar a polícia fora do acontecimento, embora as partes envolvidas já estivessem de acordo quanto às providências cabíveis. Assim, chegamos à DP, o irmão mais velho, o próprio ferido e eu, o que me pareceu errado e desumano, pois o rapaz continuava a gemer, necessitando, na verdade, de repouso. O irmão mais velho da vítima, convencido de que eu cumpriria a palavra quanto ao pagamento das despesas necessárias, propôs declararmos que tudo não passara de um acidente. A família do motociclista não apresentaria queixa contra mim. Tão logo, porém, entrei na delegacia, comecei a sofrer um processo de achacamento, isto é, uma tentativa de extorsão por parte de alguns policiais de plantão:
__ O senhor compreende, há uma vítima. Aliás, eles afirmam que o senhor foi o causador direto do acidente. O rapaz está muito machucado. Haverá .um processo. É melhor conversarmos. Talvez, dependendo somente do senhor, tudo possa ser arranjado. Sussurrava um inspetor.
À vista, entretanto, do que combinara com os dois irmãos, mantinha-me firme dizendo que tudo acontecera por força de um infeliz acidente, que ninguém tivera culpa. As horas passavam e nada se resolvia. Acredito ter ficado na delegacia, inclusive o pobre rapaz acidentado, umas três horas. Não havia meios de nos liberarem. Depois de muita conversa, ou de várias tentativas de extorsão, resolveram continuar encenando a comédia dizendo que tomariam o meu depoimento por escrito a fim de fazer parte integrante do processo a ser instaurado. Pediram-me que fosse ao andar de cima, longe do burburinho da sala de recepção, acompanhado de um policial corpulento, acaboclado, a quem, aliás, eu conhecia de vista ali do bairro mesmo. Embora sabendo que a teoria lombrosiana perdera a validade científica, não pude deixar de, examinando as feições do meu acompanhante, enquanto ele punha com dificuldade o papel do depoimento numa máquina de escrever, achar que estava diante de um bronco, um simplório, que desejava apenas receber uma propina para livrar-me de eventual processo. Ora, em primeiro lugar, a minha consciência não me permitiria fugir às minhas responsabilidades, pois já havia declarado ao irmão mais velho da vítima que eu fora o causador do acidente. Em segundo lugar, além de estar mal-humorado por ter sido praticamente detido por longo tempo sofrendo um processo torpe de tortura mental, achei ultrajante ser manipulado por indivíduos que, ao invés de dignificarem tão nobre profissão, deslustram-na por cupidez a mais hedionda.
__ Como foi que aconteceu o acidente? Perguntou-me o latagão travestido de autoridade.
__ Dir-se-ia que o móbil da sobrevença decorreu menos da aleatoriedade, algo nebulosa, concernente à imperícia porventura dos partícipes e mais da inelutável consequência das leis reguladoras dos corpos em movimento...
__ Como???
__ ...uma vez que as forças centrípetas de que estavam revestidos os veículos antagônicos, considerando-se a energia cinética também, que não seria um fator despiciendo, teriam sofrido um desvio...
Nesse instante, sem ter acionado uma só tecla da máquina de escrever, o meu distinto interlocutor pôs-se de pé, amassou a folha de papel ainda virgem, atirou-a na cesta de lixo e disse com a voz alterada:
__ Nós queremos é saber quanto você vai dar para se livrar do processo!
Ainda desempenhando o meu papel - o de uma espécie de fóssil que passara a vida toda perdido num laboratório de pesquisas inúteis - disse-lhe, candidamente, que "pagaria, estava claro, uns, vamos dizer, cinquenta contos?". Foi demais para ele: levantou-se, deu-me as costas, saindo da sala batendo os pés com força no chão.
Timidamente, a uma distância aconselhável, desci a escada vagarosamente e entrei na sala de recepção. Em cerca de dois minutos, não mais, estávamos na rua despedindo-nos, enquanto eu prometia avistá-los no dia seguinte para tomar as providências prometidas, a vítima, o irmão mais velho e eu.
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