Marcelo Bessa / da série "O Diário de Rampion" - Meu casamento acabara e eu me sentia deprimido. Tornar-me livre da noite para o dia também fazia doer, talvez até mais que o cativeiro. Assim, buscando distrair-me um pouco, fui encontrar-me com um amigo numa certa manhã de sábado.
Mas, naquela primeira manhã de sábado, estando estacionado à porta da casa dele já há algum tempo, resolvi ir até o bar da esquina tomar um café. Em sentido contrário, ainda era bem cedo, a rua meio deserta, veio vindo uma mulher segurando uma bisnaga de pão. Era jovem, não muito bonita, ostentava um certo ar intelectual, cabelos castanhos encaracolados, morena e, o que tinha de melhor, um corpo bem feito. Com os olhos cravados em mim e eu com os olhos cravados nela, cruzamos um pelo outro. Voltei-me e ela voltou-se também. Simone, esse foi o nome que me deu depois, provavelmente falso, morava quase em frente ao colega retardatário. Tomei o café e voltei ao meu carro, aliás, parado bem em frente à janela em que morava aquela que parecia ser uma atraente conquista. Quem sabe uma aventura amorosa não seria um bom remédio para a depressão que me assaltava naqueles dias? Simone voltou logo à rua, certamente receando que eu me fosse embora, dirigindo-se para um outro carro bem perto do meu, abrindo-o e fingindo que procurava algo dentro dele. Por que tudo aquilo? Seria casada? Pra que tanta encenação? Retornando ao apartamento apareceu logo na janela vendo-me colocar um papelzinho no para-brisas do carro dela. Nesse ínterim, Oscar - assim se chamava o retardatário - chegou e dei partida no motor do carro. Pelo espelho retrovisor, porém, percebi que ela voltara à rua para apanhar o bilhete que eu lhe deixara.
Alguns dias depois telefonou-me. Marcamos um encontro. No bolso, eu já levava a chave do apartamento de um amigo que morava sozinho na rua Paula Freitas, em Copacabana. Sem mais delongas, fomos às vias de fato. Foi bom, muito bom, embora ela fosse estranha, pois falava pouco parecendo-me algo dispersiva. Aquele ar de intelectual perturbava-me um pouco. Não gostei quando ela me disse que vivia com outro homem, um policial. Despedimo-nos. Passaram-se então alguns dias e ela não me dava notícias. Por curiosidade, passei algumas vezes em frente à casa dela: as janelas estavam sempre fechadas. No sábado fui encontrar-me com Oscar. Nova espera. A janela do apartamento de Simone continuava fechada. Naquela manhã, irritado, resolvi não mais sair com Oscar. Quase dei partida no carro sem dar-lhe explicação.
Um mês depois, Simone telefonou dizendo que estivera de férias e que pensava muito em mim. Com a chave do apartamento no bolso fui ao encontro dela. Pouco antes de sairmos do apartamento, ela disse que precisava muito de um grande favor. "Essa cara vai me pedir dinheiro emprestado" - pensei.
- Estou num grande aperto.- De que se trata?
- Perdi o dinheiro das contas da casa num jogo de cartas. Fulano é muito violento. Tenho medo que me espanque. No outro dia, para não apanhar dele, fiquei segurando o meu filho no colo o tempo todo. Preciso muito de você.
- Por que você jogou?- Sou viciada.
- Desde quando?
- Desde que fui viver com ele.
- Ele é o causador do seu vício?
- É.
Ali, naquele instante, desapontadíssimo, ferido no meu amor próprio, percebi que ela se encontrou comigo apenas para pedir-me dinheiro:
- Se foi o seu marido que viciou você no jogo, acho justo que ele seja informado do seu drama. Ele deve pagar a conta. Diga-lhe isto. - retruquei.
- Tchau!
Na verdade, aquela solicitação extemporânea foi o pretexto de que eu necessitava para não mais tornar a vê-la. Naquele nosso último encontro ela me contou que costumava praticar tiro ao alvo em casa com um revólver calibre 22: o alvo eram as baratas que, irresponsáveis, ousavam passar pela cozinha. Além disso, sendo o companheiro um policial, quem sabe se ele já não a estivesse seguindo, acampanando, como se diz na gíria policial, desconfiado talvez de que ela o traía? Sendo um tira, algum faro devia ter. Uma vez eu os vi de braços dados saindo de uma loja. O marido era um homem corpulento e mal-encarado. De outra feita, entrei num bar na rua Uruguaiana e pedi uma xícara de café com leite e pão com manteiga. Logo ao primeiro gole, estarrecido, vi o tal sujeito entrar no bar e sentar-se bem à minha frente. Paguei a conta e saí rapidamente. Nem cheguei a tocar no pão com manteiga.
A Estranha Viciada - de Marcelo Bessa. Da série "O diário de Rampion"
Adorei, um conto sem muitas delongas, porém sem perder o brilho característico deste gênero
ResponderExcluirTambém gostei muito!
ResponderExcluirAna Beatriz