Um conto de Marcelo Bessa
Naqueles tempos felizes, havia uma fauna animal rica na baía de Guanabara. Quando o orçamento caseiro definhava, Hélio e seus irmãos iam ao mar colher os frutos gostosos que enriqueceriam suas refeições. Um dia era marisco; no outro, peixe; num terceiro, siri.
A caça ao siri azulão, encontradiço na areia, nas partes mais fundas da praia, era, para ele, sensacional. Agradava-lhe caçar o azulão. Nas tardes chuvosas de mar calmo, Hélio e seus dois irmãos, Hamilton e Haroldo, ficavam no ponto mais alto dos pedregulhos colocados contra o paredão - espécie de contrafortes que defendiam a rua das ressacas -, fazendo dali um ponto de observação. De repente, divisavam um vulto escuro movendo-se no fundo do mar. Era hora de mergulhar, sair ao encalço do azulão. Logo que pressentia o inimigo, o siri dava-lhe as costas e disparava para as partes mais fundas e obscuras da água. Os meninos nadavam bem rentes à areia procurando alcançar a presa com suas mãos nuas. E o drama sempre se repetia: o pobre crustáceo perdia a corrida e, não tendo como fugir, voltava-se contra eles erguendo as patas dianteiras com as garras escancaradas, assumindo a posição de combate. Era aguardar o momento propício para agarrá-lo pelo tronco, retirá-lo da água, pondo-o numa lata de banha de vinte quilos. Havia dias em que os meninos levavam quase meia centena de siris pra casa. O azulão adulto, com as patas dianteiras estendidas, podia medir, de garra a garra, quase 50 centímetros, e sua carne branquinha, cozida com arroz, era um alimento digno dos deuses.
Já que o mundo aquático exercia tão grande fascinação, Hélio tratou logo de incorporar uma atividade marítima à sua vida para melhor conviver com o ambiente de que tanto gostava: ingressou-se na tropa de escoteiros do mar. O grupo, que situava-se dentro do clube de regatas do Flamengo, dispunha, além da salinha de reuniões, de um barco robusto (NC-5) que levava os meninos escoteiros a toda parte da baía de Guanabara, mas, às vezes, para fora da boca da barra também, em mar alto. O tempo jamais foi obstáculo às suas atividades marítimas. No NC-5 conheceu o prazer de velejar mansamente sob o céu azul ou estrelado, e sob condições até perigosas, isto é, debaixo de fortes aguaceiros e temporais, quando o mar se tornava negro e insondável. Uma vez, fora da barra, o mar estava tão picado, tão ameaçador, que resolveram lançar a âncora, pois o barco corria o risco de abater-se sobre a praia. Na proa, de pé, estava Hélio tentando equilibrar-se, segurando a âncora, aguardando o melhor momento para atirá-la à água, e tão logo ele o fizesse, os outros companheiros deveriam movimentar os remos vigorosamente para que o ferro se prendesse no fundo. Nesse dia, porém, como o NC-5 corcoveou-se muito, ele foi ao mar junto com a âncora. Quando voltou à tona, viu a embarcação e todos os tripulantes voando na crista de uma onda indo se estatelarem na areia da praia, bem ao lado de um boto, de quase dois metros de comprimento, arrebatado para sempre de seu habitat pela fúria do mar. O casco do barco ficou naturalmente bastante avariado. Os meninos escoteiros tiveram de carregar nos ombros remos, forquilhas, leme, âncora, correntes, etc., da praia de Boa Viagem até a de São Domingos, em Niterói, onde normalmente ficava fundeado o NC-5 e guardado todo o equipamento. O barco foi rebocado posteriormente para o estaleiro por um caminhão.
Na semana seguinte, a tropa alugou uma casa modesta na ilha de Paquetá, onde ficaram hospedados por alguns dias. Uma vez que o barco estava sendo reparado, realizavam provas de campo, como caminhadas, maratonas, e outras atividades comuns ao escotismo. Certa noite, porém, quando todos se preparavam para dormir, passaram a ouvir sirenes inquietantes vindas do mar. A noite era escura como um breu. Logo receberam a informação de que uma lancha, repleta de passageiros, havia abalroado um recife. Temia-se que houvesse muitos mortos. Com o NC-5 no estaleiro nada puderam fazer. Naquela noite tenebrosa, Hélio sentia-se angustiado, impotente, diante daquela situação, como se estivesse com as mãos e os pés atados. Passou a noite quase inteira rezando, pedindo a Deus que poupasse a vida dos náufragos.
No dia seguinte, logo pela manhã, dois corpos deram à praia, bem em frente da casa em que os meninos estavam acantonados: um homem e uma criancinha. O pai do bebê apareceu no local e, ao reconhecer o filho morto, desesperou-se. Depois, mais calmo ou conformado, contou que, em decorrência do choque da lancha com a pedra, fora atirado ao mar com a mulher e o filho juntamente com outros passageiros. Durante algum tempo, sustentou uma luta desigual com os elementos da natureza, segurando a mulher de um lado e a criança do outro. Depois, cansou: o filho escorregou de sua mão sendo logo tragado pelo mar. Um ou dois dias depois, Hélio e seus irmãos resolveram encerrar suas atividades e voltaram tristes para casa.
Nota do autor: Essa história é verídica. O personagem, Hélio, realmente existiu. Ele faleceu em maio de 2010, aos 79 anos, em sua residência na Barra da Tijuca - Rj.
Grande texto!
ResponderExcluirGostei!
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