Cartilha contra a corrupção nas prefeituras - Os bastidores das fraudes

A engenharia do desvio de recursos públicos cria instrumentos para dar à corrupção aspectos de legitimidade. Criaram-se métodos mais ou menos padronizados e utilizados com uma certa regularidade nas prefeituras dirigidas por administradores corruptos. No cotidiano da administração, mesmo um olhar externo mais atento pode ter dificuldade em perceber irregularidades contidas em coisas aparentemente banais, como o preenchimento de uma nota fiscal ou um pagamento em cheque da prefeitura.
No entanto, a investigação mais aprofundada pode revelar como funciona, nos bastidores, o esquema desonesto.
Empresas constituídas às vésperas do início de um novo mandato
Nos períodos próximos à mudança de governo nas prefeituras, as quadrilhas começam a agir no sentido de implantar os sistemas de corrupção nas administrações futuras. Assim que o prefeito eleito é conhecido, os fraudadores dão início à montagem dos esquemas que serão introduzidos após a posse. Uma das primeiras e mais comuns providências é a criação de empresas, ou de empresas-fantasmas que passarão a fornecer para a prefeitura.
Para descobrir se alguma firma foi constituída com esse intuito, deve-se fazer um pesquisa na Junta Comercial, levantando os protocolos e as datas de criação dessas empresas. É preciso estar atento para a possibilidade de os sócios serem meros “laranjas”, que emprestaram seus nomes para servirem de testas-de-ferro no esquema de corrupção. Os grupos de fraudadores costumam também manter um estoque de empresas “fantasmas” prontas para serem utilizadas.
Nesses casos, o Tribunal de Contas poderia exercer um importante papel. Ao detectar que uma empresa é “fantasma”, esse órgão poderia checar se em outras prefeituras do mesmo estado houve o recebimento de notas fiscais iguais. Com isso, se estaria criando um mecanismo mais poderoso de combate à corrupção.
Licitações dirigidas
Um dos mecanismos mais comuns para se devolverem “favores” acertados durante a campanha eleitoral, bem como de canalizar recursos públicos para os bolsos dos cúmplices, é o direcionamento de licitações públicas. Devido ao valor relativamente baixo das licitações que se realizam nas prefeituras de porte pequeno, a modalidade mais comum de licitação é a carta-convite. O administrador mal-intencionado dirige essas licitações a fornecedores “amigos”, por meio da especificação de condições impeditivas da livre concorrência, incluindo exigências que os demais fornecedores em potencial não têm condições de atender.
Um indício da possibilidade de problemas em licitações é a constância de compras junto aos mesmos fornecedores, sem que haja um certo rodízio. Caso haja esse indício, vale uma investigação mais atenta. Sendo comprovado que está havendo direcionamento de compras a fornecedores privilegiados, o fato configura formação de quadrilha.
Outro mecanismo, às vezes empregado, é realizar compras junto a empresas de outras localidades, tornando mais difícil aos integrantes da comunidade avaliar a sua reputação e idoneidade.
Fraudes em licitações
Um dos sistemas utilizados para justificar a aquisição fraudulenta de materiais e serviços é a montagem de concorrências públicas fictícias. Mesmo que haja vício na escolha, ou seja, mesmo que o prefeito corrupto já saiba antes do processo qual firma vencerá a concorrência, é preciso dar ares legais à disputa. A simulação começa pela nomeação de uma comissão de licitação formada por funcionários envolvidos no esquema. Depois, a comissão monta o processo de licitação, no qual condições restritivas são definidas. Não raro, participam do certame empresas acertadas com o esquema, que apresentam propostas de antemão perdedoras, apenas para dar aparência de legitimidade ao processo.
Na investigação sobre possíveis embustes em licitações, uma importante pista pode estar nos termos empregados e mesmo nos caracteres gráficos das propostas entregues pelas empresas. Muitas prefeituras ainda se utilizam de formulários que precisam ser preenchidos a máquina. Um exame minucioso permite constatar se uma mesma máquina de datilografia foi usada no preenchimento de propostas apresentadas por diferentes participantes do processo. O exame estilístico dos textos, em busca de termos, frases e parágrafos que se repetem em diferentes propostas, também fornece indícios.
Se na lista de participantes de licitações aparecem os nomes de firmas idôneas ou conhecidas, é essencial que, por meio de um contato direto, se confirme a sua participação no processo. Isso porque alguns empresários se surpreenderam ao serem informados de que haviam tomado parte em concorrências sobre as quais não tinham conhecimento. Suas empresas foram incluídas pelos fraudadores, que, para isso, empregaram documentos falsificados. Essa operação de inserir empresas com boa reputação tem o objetivo de “branquear” o processo licitatório.
Fornecedores “profissionais” de notas fiscais “frias”
Uma pequena história ocorrida no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e testemunhada por um dos autores desta cartilha, ilustra bem o que vem a ser a indústria de notas fiscais “frias”. Perguntado sobre sua atividades, um conhecido falsário do interior do Estado de São Paulo, sem o menor constrangimento, respondeu : “Eu agora estou no ramo de fornecimento de notas fiscais 'frias'. De agulha a avião, forneço nota de qualquer coisa, a um custo muito competitivo de 4% sobre o valor da nota.”
Freqüentemente, como no caso de Ribeirão Bonito, notas de empresas diferentes, mas evidentemente impressas com o mesmo layout e características e defeitos gráficos, aparecem na contabilidade de diversas prefeituras de uma região, indicando a existência de quadrilhas especializadas nessa modalidade de fraude.
Indícios de fraude no uso de notas fiscais de fornecimentos
O levantamento da documentação relativa às despesas realizadas pela prefeitura pode revelar muitos indícios de desvio de dinheiro público. 
Falta de controle de estoque na prefeitura
Uma artimanha muito utilizada é simular desorganização para justificar ou encobrir desvios. Assim, os almoxarifados não registram entradas e saídas dos produtos adquiridos. Na mesma linha, faltam registros das requisições feitas pelos diversos setores e não há identificação dos responsáveis pelos pedidos. A falta de um controle rígido do estoque, de forma a impossibilitar a apuração do movimento de materiais de consumo nos depósitos das prefeituras, é traço de fraude.
Consumo de combustível, merenda escolar, cabos elétricos, tubulações etc.
A falta de qualidade da merenda escolar e o seu consumo desproporcional ao número de alunos, a utilização de cabos, tubulações e outros materiais de construção de forma incompatível com a dimensão e a propriedade de seu emprego, além de gastos com combustível em quantidade muito superior ao necessário à frota constituem práticas de desvio de recursos muito usuais em certas prefeituras.
No consumo de gasolina, diesel e álcool pela frota da prefeitura encontra-se uma das formas mais comuns de fraude contra os recursos públicos. Acontece, principalmente, quando não existe um controle de estoque ou quando o funcionário encarregado de monitorar as entradas e saídas faz parte do esquema de corrupção. Diante disso, só se justifica que uma prefeitura tenha seus próprios depósitos de combustível se os preços praticados nos postos de gasolina instalados na cidade forem exorbitantes ou se inexistirem locais para o abastecimento.
No caso de Ribeirão Bonito, constatou-se que o encarregado não registrava medições nem mantinha qualquer tipo de controle. No início, a fraude era feita com a entrega de apenas uma parte do combustível, enquanto a outra era armazenada em uma propriedade particular. Posteriormente, fazia-se a entrega do restante, como se fosse uma outra carga completa, e assim era registrada pelo controlador do depósito.
Mais tarde, como se sentissem desimpedidos para continuarem com suas ações, e como consideraram que movimentar combustível era muito trabalhoso e oferecia riscos, os fraudadores resolveram simplificar o método. Passaram então a entregar apenas as notas fiscais na prefeitura. O responsável pelo almoxarifado continuou a atestar o recebimento do combustível e a contabilidade manteve os pagamentos.
Outro artifício utilizado por algumas administrações corruptas para tentar justificar o alto consumo de combustível é manter veículos sucateados nos registros da prefeitura. Mesmo inadequados para o uso, são licenciados anualmente para que façam parte dos registros da municipalidade. Dessa forma se justifica o consumo de combustível acima das necessidades da frota real e se encobre o desvio. No caso de Ribeirão Bonito, o Tribunal de Contas do Estado computou os veículos “fantasmas” como ativos, para o cálculo médio de consumo por veículo.
Promoção de festas públicas para acobertar desvios de recursos
As festas públicas promovidas pela prefeitura merecem uma atenção especial, pois algumas empresas de eventos, pela própria natureza dos serviços que prestam, têm sido grandes fornecedoras de “notas frias”. Isso se deve ao fato de ser difícil checar a veracidade dos cachês dos artistas e da comissão que cabe aos agentes. Há ocasiões em que as notas desses eventos são superfaturadas e parte do dinheiro volta ao prefeito e à sua equipe.
Pagamentos com cheques sem cruzamento
Os integrantes dos esquemas de desvio de verbas públicas sempre procuram evitar que o dinheiro transite por meio de depósitos bancários. Por isso, em muitos pagamentos feitos por administrações municipais desonestas, utilizam-se cheques não cruzados, o que desobriga o recebedor de depositá-los em uma conta bancária. Fazendo o resgate desse tipo de papel diretamente nos caixas das agências, evita-se que a circulação do dinheiro obtido ilegalmente deixe muitos rastros. Uma vez em espécie, as quantias podem ser divididas mais facilmente entre os participantes das quadrilhas e sem que se conheçam os seus destinatários finais.
Alguns optam por deixar o dinheiro em suas casas, na forma de papel-moeda, e o utilizam para o pagamento de parte de suas despesas. Manipulando os resultados do furto dessa forma, diminuem a possibilidade de ser rastreados pela Receita Federal e dificultam investigações.
Outros fraudadores preferem transformar o dinheiro roubado em dólares obtidos no mercado paralelo, até como forma de investimento. As notas são, geralmente, guardadas em cofres residenciais, ou alugados de bancos. Em alguns casos, são feitos depósitos de moeda estrangeira em contas bancárias no exterior.
Uma forma que funcionários municipais encontraram de auxiliar nesse tipo de fraude é facilitar a retirada de cheques da prefeitura sem o registro claro de quem o está fazendo.
Publicações oficiais
As publicações oficiais das prefeituras em periódicos locais ou regionais também podem ser instrumentos de fraude. O padrão de custeio de anúncios publicitários é o preço por centímetro de coluna.
A contratação de um veículo para publicação de anúncios oficiais precisa passar por licitação. Se esta é mal feita (muitas vezes intencionalmente), usa-se como critério exclusivamente o preço por centímetro de coluna, e não se faz menção ao volume total a ser licitado. Isso deixa aberta a possibilidade de se superdimensionarem os espaços ocupados pelo material publicado (layouts generosos, tipografia exageradamente grande etc.).
Existem ainda revistas especializadas em promover a publicidade de prefeitos e administrações municipais. Isso onera os cofres públicos e deve ser encarado no mínimo com desconfiança.
Conluio em ações judiciais
Todo órgão público é alvo de grande número de ações judiciais, e as prefeituras não são diferentes. Por vezes acontece de administradores inescrupulosos, em conluio com outros interesses, causarem deliberadamente motivo para ações na aparência justas. Depois, em conluio com os autores da ação, o prefeito e/ou seus auxiliares simulam ou formulam acordos contrários ao interesses público. O resultado é posteriormente partilhado entre os demandantes e os membros da administração municipal.
Notória especialização
Por vezes, prefeitos contratam advogados e outros profissionais com dispensa de licitação, baseados no argumento da “notória especialização”, a despeito da existência de profissionais internos na administração municipal. Além de nem sempre os advogados contratados deterem a notoriedade requerida pela lei, não raro a contratação se faz a preços demasiadamente elevados em face da tarefa a ser cumprida. Parte do valor dos contratos pode retornar por vias transversas para o contratante. Assim, é sempre importante vigiar se a “notória especialização” está de fato presente e se a contratação excepcional é realmente necessária.
Declaração de renda do prefeito
Quando um prefeito tem a intenção premeditada da apropriar-se dos bens públicos, manipula sua declaração de renda antes mesmo de assumir o cargo. De modo a se preparar para receber valores originários de desvio de dinheiro público, a declaração inclui uma série de bens semoventes, como obras de arte, ouro e gado. Como alguns desses objetos podem ser valorizados artificialmente, têm a função de “esquentar” o dinheiro e de justificar um enriquecimento súbito.
Comprometimento de vereadores com o esquema de corrupção
Uma forma de prefeitos corruptos obterem apoio aos seus esquemas é buscando, de forma explícita ou sutilmente, o comprometimento dos vereadores com o desvio de dinheiro público.
O envolvimento pode dar-se de forma indireta, por meio de compras nos estabelecimentos comerciais do vereador, o qual por sua vez é ameaçado pela interrupção dessas aquisições e por isso, muitas vezes, faz vistas grossas aos atos do prefeito. Outras maneiras que o alcaide usa para ganhar a “simpatia” de vereadores é pelo oferecimento de uma “ajuda de custo”, pela nomeação parentes dos membros do legislativo municipal para cargos públicos e outras práticas de suborno e nepotismo.
Há, ainda, os casos em que os vereadores participam diretamente do esquema de corrupção, sendo recompensados por seu silêncio com uma importância mensal “doada” pelo prefeito. Não é de admirar, assim, que tais vereadores sejam contrários a qualquer tipo de investigação que se proponha contra o prefeito. Qualquer apoio desses vereadores a processos que apurem irregularidades na prefeitura (como criação de CPIs, processos de cassação etc.) traria como conseqüência a revelação do seu envolvimento.
Favorecimentos como contraprestação
Uma das formas indiretas de compensação pelo “serviço” de desvio de recursos públicos é o oferecimento de bens e serviços para os uso particular dos administradores corruptos por parte dos fornecedores beneficiados. Os “favores” consistem, muitas vezes, na cessão de veículos e imóveis em cidades turísticas para serem utilizados pelo prefeito e seus familiares, realização de obras em suas propriedades, além de presentes. Existem casos, ainda, em que comerciantes abastecem a residência do prefeito com produtos (como por exemplo alimentos) e incluem esse fornecimento indiretamente na conta da prefeitura.
Algumas medidas podem ser tomadas para se certificar de que está havendo esses tipos de favorecimento. No caso de veículos, pode-se obter os nomes dos seus verdadeiros proprietários fazendo uma consulta aos órgãos de trânsito, como o DETRAN. Para isso, é necessário apenas conhecer a placa do veículo. Nunca se esquecendo de que o registro de propriedade pode ter sido feito em nome de empresas dos fornecedores, de seus sócios, ou de “laranjas”.
Quando se trata de construções e reformas executadas em propriedades, uma prova cabal de irregularidades é a demonstração de que estão sendo realizados gastos incompatíveis com os vencimentos e subsídios dos ocupantes dos cargos públicos. Um registro fotográfico das obras pode ser importante para a análise das despesas realizadas.

Continua na próxima edição

Comentários

  1. Caramba, parece que está falando de MARICÁ! Mas é de Rio bonito. Uma praga.

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  2. Pois é, Marcelo, Ribeirão Bonito não difere em nada de outros municípios brasileiros. Na verdade é exatamente como Maricá ou qualquer um que queiramos nominar. É preciso denunciar. Sempre.

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