Um conto de Marcelo Bessa
Por ocasião dos anos 40, no Rio de Janeiro, Dona Ludimila, mãe ativa e preocupada, ao terminar o curso primário de seu filho, Paulinho, conseguiu encaixá-lo num estabelecimento de ensino profissionalizante que funcionava também como uma espécie de internato. A referida escola localizada nas imediações do Maracanã, orientava-se para os chamados cursos técnicos.
Do internato, o de que mais Paulinho gostava mesmo era das refeições e das práticas esportivas, além, é claro, das aulas de desenho, para as quais a sua vocação sorria abertamente. O resto não lhe dizia coisíssima alguma, a não ser a professora de geografia - um sonho de mulher no meio daquele mar de grosserias.
A violência naquela escola anunciava-se bramindo. Os alunos, na grande maioria, eram brigões inveterados. Por qualquer motivo estourava um conflito. Houve um aluno, chamado Otávio, colega de classe de Paulinho, que quase matou um outro aplicando-lhe seguidas cacetadas com um cabo de vassoura na cabeça. O diretor da escola, um homem magro, secarrão, óculos à Harold Lloyd, alheio a tudo, refugiava-se no gabinete, entregando a direção do internato a inspetores ignorantes.
Na verdade, aquele estabelecimento escolar, a exemplo de muitos outros similares espalhados pelo país inteiro, atendia ao intento maligno da ditadura Vargas de propiciar apenas uma profissão subalterna aos jovens, a fim de que não viessem a ter pruridos futuros de liberdade. Se assim não fosse, por que não se instituiu uma só escola pública federal, ao longo de todo o chamado Estado novo, onde se tornasse possível ampliarem o seu intelecto? Além do Colégio Militar, inaugurado em priscas épocas, restava o velho Colégio Pedro II, criado pelo ínclito segundo imperador do Brasil. Pensavam talvez os dirigentes do país que um marceneiro, um empalhador de cadeira, um lustrador de móveis, um serralheiro ou um eletricista - seriam vítimas dóceis da propaganda oficial. Como eram estúpidos! A impressão de Paulinho robustece quando pensa que o inimigo mais temido dos ditadores é o intelectual, o poeta, enfim.
Um dia, na hora do recreio, jogava-se animada partida de futebol, quando dois meninos, de uns onze anos de idade, mais ou menos, engalfinharam-se. Brigavam como se defendessem a própria vida. Era soco pra lá, soco pra cá. Rolavam no chão. Chutavam-se. Rasgavam-se. De repente, quando a contenda já se estendia por vários minutos, cansados, sentiram-se agarrados por duas manoplas de ferro e levados para fora do campo. Como os judeus, supliciados na segunda guerra mundial, que pensavam serem conduzidos para os chuveiros refrescantes e que acabaram assassinados pelos gases mortais, os dois meninos igualmente pensavam que iriam ser conduzidos à presença do chefe de disciplina, mas, ao invés disso, viram-se, na realidade, numa sala deserta com o inspetor Serrão, considerado por todos um brutamontes.
Serrão era um tipo mal encarado, sempre impecavelmente vestido, como era comum naquele tempo, de camisa social creme de seda, um pregador de gravata de onde cintilava uma pedra rubra, terno azul marinho e sapatos pretos de solado grosso, bem engraxados.
Naquela sala distante e isolada, o inspetor deu vazão a todos os seus instintos criminosos: espancou os dois meninos brutalmente. Como se fora um torturador, bem conhecedor de seu ofício, teve cuidado de não deixar marcas que pudessem denunciar a violência, como olhos inchados, narizes amassados, dentes partidos, etc. Dava tapas nos rostos e socos nas cabeças dos rapazes. Enquanto um apanhava, o outro, trêmulo, encolhido num canto, aguardava a vez. E as sessões de pancadaria repetiam-se várias vezes. Afinal, talvez cansado de tanto bater, Serrão liberou os dois meninos.
A escola inteira não soubera da violência. Um dos alunos espancados era Paulinho, filho de Dona Ludimila.
Ilustrações de HBessa
Por ocasião dos anos 40, no Rio de Janeiro, Dona Ludimila, mãe ativa e preocupada, ao terminar o curso primário de seu filho, Paulinho, conseguiu encaixá-lo num estabelecimento de ensino profissionalizante que funcionava também como uma espécie de internato. A referida escola localizada nas imediações do Maracanã, orientava-se para os chamados cursos técnicos.
Do internato, o de que mais Paulinho gostava mesmo era das refeições e das práticas esportivas, além, é claro, das aulas de desenho, para as quais a sua vocação sorria abertamente. O resto não lhe dizia coisíssima alguma, a não ser a professora de geografia - um sonho de mulher no meio daquele mar de grosserias.
A violência naquela escola anunciava-se bramindo. Os alunos, na grande maioria, eram brigões inveterados. Por qualquer motivo estourava um conflito. Houve um aluno, chamado Otávio, colega de classe de Paulinho, que quase matou um outro aplicando-lhe seguidas cacetadas com um cabo de vassoura na cabeça. O diretor da escola, um homem magro, secarrão, óculos à Harold Lloyd, alheio a tudo, refugiava-se no gabinete, entregando a direção do internato a inspetores ignorantes.
Na verdade, aquele estabelecimento escolar, a exemplo de muitos outros similares espalhados pelo país inteiro, atendia ao intento maligno da ditadura Vargas de propiciar apenas uma profissão subalterna aos jovens, a fim de que não viessem a ter pruridos futuros de liberdade. Se assim não fosse, por que não se instituiu uma só escola pública federal, ao longo de todo o chamado Estado novo, onde se tornasse possível ampliarem o seu intelecto? Além do Colégio Militar, inaugurado em priscas épocas, restava o velho Colégio Pedro II, criado pelo ínclito segundo imperador do Brasil. Pensavam talvez os dirigentes do país que um marceneiro, um empalhador de cadeira, um lustrador de móveis, um serralheiro ou um eletricista - seriam vítimas dóceis da propaganda oficial. Como eram estúpidos! A impressão de Paulinho robustece quando pensa que o inimigo mais temido dos ditadores é o intelectual, o poeta, enfim.
Um dia, na hora do recreio, jogava-se animada partida de futebol, quando dois meninos, de uns onze anos de idade, mais ou menos, engalfinharam-se. Brigavam como se defendessem a própria vida. Era soco pra lá, soco pra cá. Rolavam no chão. Chutavam-se. Rasgavam-se. De repente, quando a contenda já se estendia por vários minutos, cansados, sentiram-se agarrados por duas manoplas de ferro e levados para fora do campo. Como os judeus, supliciados na segunda guerra mundial, que pensavam serem conduzidos para os chuveiros refrescantes e que acabaram assassinados pelos gases mortais, os dois meninos igualmente pensavam que iriam ser conduzidos à presença do chefe de disciplina, mas, ao invés disso, viram-se, na realidade, numa sala deserta com o inspetor Serrão, considerado por todos um brutamontes.
Serrão era um tipo mal encarado, sempre impecavelmente vestido, como era comum naquele tempo, de camisa social creme de seda, um pregador de gravata de onde cintilava uma pedra rubra, terno azul marinho e sapatos pretos de solado grosso, bem engraxados.
Naquela sala distante e isolada, o inspetor deu vazão a todos os seus instintos criminosos: espancou os dois meninos brutalmente. Como se fora um torturador, bem conhecedor de seu ofício, teve cuidado de não deixar marcas que pudessem denunciar a violência, como olhos inchados, narizes amassados, dentes partidos, etc. Dava tapas nos rostos e socos nas cabeças dos rapazes. Enquanto um apanhava, o outro, trêmulo, encolhido num canto, aguardava a vez. E as sessões de pancadaria repetiam-se várias vezes. Afinal, talvez cansado de tanto bater, Serrão liberou os dois meninos.
A escola inteira não soubera da violência. Um dos alunos espancados era Paulinho, filho de Dona Ludimila.
Ilustrações de HBessa
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