Clique aqui para ler o capítulo anterior
6. A Proposta
Era esse o meu estado, quando, no início do ano de 1987, expus, na parede da sala de minha casa, o quadro genealógico completo do povoado, para pouco depois inscrever-me no curso de doutoramento da Universidade de São Paulo, com uma proposta de projeto - “Um Evento Social Paradigmático e seu Contexto Etnográfico: a dramatização da abertura-da-barra entre os pescadores de Maricá/RJ”: 54
"O ofício de etnólogo guarda com a arte da narrativa um parentesco intrigante. Afinal, o exercício de ambos supõe o desejo manifesto de um diálogo, no sentido radical do termo. Nossas etnografias apresentam-se tão indissoluvelmente ancoradas em nossas vidas que seria de todo inútil buscar nelas mais do que o simplesmente verossímil.
"Sei perfeitamente bem que este juízo não é partilhado pela unanimidade dos cientistas sociais. No entanto, estou seguro de contar com a adesão de inúmeros colegas na edificação de teorias que não pretendam, uma vez mais, naturalizar o mundo social. Prefiro a alternativa mais generosa de conceber a ciência social como ciência empírica do significado, rejeitando os lugares - comuns dos reducionismos deterministas acalentados pela razão prática.
"Adotar esta perspectiva é menos o fruto de uma pretensão de refutar teorias sociológicas de extração naturalista, do que o desejo e a necessidade de rever conceitos e categorias quando o objeto de nossa investigação se impõe resistente. É
52 A propósito, consulte-se Gluckman (1963:307-316). Em Zacarias, a “fofoca” é, apropriadamente, referida como “política” (“Aí começou aquela política...”).
53 Participaram, além de Denise Maria Duque Estrada e Mariana Ciavatta Pantoja Franco, “Maninha” (filhade “Mieca” e “Ita”) e “Déia” (filha de “Beco” e Ruth).
54 O que segue é a íntegra da proposta de projeto com que a Profª Dra. Luciana Pallestrini me aceitou como candidato ao doutoramento em Antropologia, após longa entrevista realizada no seu gabinete, no MuseuPaulista, em 12 de fevereiro de 1987. Na ocasião, apresentei-lhe, e aos demais membros da banca, todo o material de campo relevante, inclusive as genealogias.
reconhecer não só as limitações de nossas teorias historicamente dadas, mas admitir nossas intuições como socialmente mediatizadas. “ Uma visão não empiricista do trabalho-de-campo na tradição dos estudos antropológicos, tem contribuído, significativamente, para a aceitação de uma postura mais relativizadora não só do mundo dos fenômenos gerais da vida social, como também das próprias teorias que empregamos na tentativa de sua compreensão.
"Durante os últimos dez anos venho realizando e orientando pesquisas entre grupos de pescadores no Estado do Rio de Janeiro. Essa atividade, mais recentemente, tem sido objeto sistemático e focalizado de atenção, no exame extenso dos processos sociais em curso na região das lagoas litorâneas, sobretudo no Município de Maricá.
"O quadro estereotipado que se delineia com o acelerado processo de urbanização de toda área, não é muito distinto, ao que tudo indica, daquele que vem ocorrendo nas últimas décadas ao longo de nosso litoral. O turismo, essa curiosa topofilia , com suas derivações e variações sazonais, além de trazer alterações na morfologia social dos lugares, segrega um desejo de permanência capaz de gerar uma verdadeira topofobia , ao redefinir e potenciar sistemas de representações concorrentes.
"A paisagem e a poética dos lugares é função do conjunto de valores que costumamos emprestar-lhes. Seus significados, por isso mesmo, são cambiantes e mutáveis. O recente incremento da ocupação urbana em Maricá espelha os conflitos inerentes a tal processo.
"O caso de Zacarias, assentamento de pescadores às margens do Lago Grande, seja pela expressividade que detém no sistema, seja pela profundidade histórica que ali assumem os conflitos derivados da forma de ocupação referida, é exemplar em todos os sentidos. É a partir dele e através da perspetiva que oferece de leitura do sistema de relações vigentes na região, que pretendo desenvolver meus argumentos e dar consistência a um projeto de pesquisa.
"Tudo já foi pensado alguma vez, diz Goethe, só o que precisamos fazer é pensá-lo mais outra vez. Tenho sempre em conta essa afirmativa quando ouso expor alguma questão ou formular um problema, pois toda a tarefa do etnógrafo consiste em permanentemente reinventar o mundo. Não qualquer mundo, porque o ofício supõe, como já disse, uma relação dialógica, portanto referida a no mínimo dois sujeitos, dois modos de pensar, duas formas possíveis do discurso.
"Para contar, sugere-nos Umberto Eco, é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores. Pretendo seguir a risca a recomendação erudita: Rem tene, verba sequentur - tenha (a coisa) isso, as palavras virão. Ora, isso precisa ser definido caso a caso quando se trata de apreender contextualmente o que isso efetivamente quer dizer. Portanto, ao inspecionar a assertiva latina em seu modo acusativo, retornamos ao problema deconsiderar, no âmbito da descrição etnográfica, as coisas em sua dimensão narrativa, quer dizer: socialmente validadas.
"Daí resulta que o etnógrafo não só está impedido de transmitir o puro ‘em si’ da coisa, como seria vão dedicar tanto esforço para simplesmente fazer do ofício relatório ou informação. Muito ao contrário, mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela, pois, tal qual o artesão, é assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro, como nos ensina Walter Benjamin.
"Ouvir uma história é pôr-se a caminho na companhia daquele que sabe; mesmo aquele que não teve o prazer do evento narrado, ao lê-lo não pode subtrair-se dessa companhia do narrador. O conhecimento etnográfico, tal qual a arte da narração, resulta do tempo. Não do instante homogêneo, mas da sucessão de eventos que vão tramando e deixam entrever o seu objeto. Vou tentar, em poucas palavras, fornecer uma visão geral do setting onde serão, pouco a pouco, introduzidos os personagens com seus desempenhos singulares.
"Quem chega a Zacarias começa logo a compreender, ou pelos menos a suspeitar, que acontecimentos recentes produziram efeitos indesejáveis para grande parte de seus moradores. Não é preciso grande esforço nem perspicácia, pois as referências são imediatas. Qualquer um é capaz de desfiar um sem número de razões para justificar não só um modo de vida, mas uma disposição espacial peculiar do assentamento.
"Zacarias está dicotomizada, dividida. Sua morfologia social traduz uma topografia moral. Entre a Ponta do Capim e a Ponta da Pedra, topônimos locais, estão aqueles que ficaram na ‘luta do tostão contra o milhão’. Mais acima, entre o cômoro da lagoa e as taboas do Lago do Bacopari, inscrevem-se os signos de uma grande cisão. Estão ali ‘os que se renderam’ juntamente com ‘os que se venderam’. Essa retórica dos motivos desenha e circunscreve na paisagem, a história de uma saga. A saga dos pescadores da Lagoa de Maricá do ponto de vista do assentamento de Zacarias. Dizer ponto de vista implica, necessariamente, assumir uma mediatização. Esta, por sua vez,institui um olhar.
"As ‘casas de cima’ vis-à-vis as ‘casas de baixo’opõem de forma complementar três respostas, ou três modos de escolher: a rendição, a venalidade e a permanência. Por detrás do bucolismo nostálgico que essa área da restinga traduz, constata-se a convivência e o contraste que processos sociais de elevados custos acarretam para diferentes dimensões do sistema de relações de todo o complexo lagunar que constitui, de maneira genérica, a Lagoa de Maricá.
"Tudo, segundo a perspectiva dos que ficaram (‘os que lutaram’), teve início há aproximadamente quarenta anos atrás. Lúcio Thomé Feteira - português, industrial, casado, residente em Lisboa, Portugal, conseguira do então interventor do Estado, Ernani do Amaral Peixoto, a concessão para explorar as areias das dunas de Maricá, visando seu aproveitamento na Companhia Vidreira de sua propriedade, situada no Município de São Gonçalo. Passa ano, entra ano, nosso industrial foi além, muito além do que havia sido concedido. Arroga-se o direito de senhor e legítimo possuidor de várias glebas de terra, remanescentes da antiga ‘Fazenda de São Bento’, investindo sobre os moradores de Zacarias na tentativa de erradicá-los daquela área para o desenvolvimento do ambicioso projeto de construção da ‘Cidade de São Bento’. Toda a concepção urbanística vem assinada por prestigioso arquiteto cujo nome poderia perfeitamente jamais ter sido associado a tal empresa. Lúcio Costa e sua equipe legitimava, com o peso de seu estrocriativo o acontecimento mais violento e dramático que deveria ser digerido pelas estruturas locais. É desse acontecimento e dessas estruturas que nos falam, incessantemente, os moradores dos diversos assentamentos de pescadores do entorno das lagoasde Maricá.
"‘A luta do tostão contra o milhão’ é muito menos a história de um cisma na comunidade de Zacarias do que a expressão dramática da produção de uma identidade. O projeto da ‘Cidade de São Bento’ supunha uma alteração significativa no ecossistema lagunar, além da intervenção catastrófica na vegetação existente em toda faixa de restinga. Do ponto de vista sociológico, no entanto, a alteração mais crucial foi aquela que resultou da construção de uma estrada litorânea que impedia a abertura sazonal da barra oceânica. Com isto, com essa simples estrada, estava colocada em questão a reprodução da identidade social de pescador da Lagoa de Maricá.
"A abertura de barra é o que poderia ser considerado, num contexto etnográfico determinado, um evento social paradigmático. Um evento a partir do qual todo o sistema de relações vigentes na região pode ser apreendido sinteticamente. A ‘barra’ desempenha aqui a possibilidade de totalização do sistema em sua unidade dramática. Por isso mesmo é pedagógica no entendimento dos processos sociais em curso. Constitui uma verdadeira arkhé , princípio, matéria primordial na elaboração dramática da identidade social dos pescadores da lagoa.
"A estrada impediu o desempenho desse rito extremamente expressivo. No entanto, sua presença nas formulações discursivas, narrativas, é constante. Ato técnico e expressivo, a abertura da barra era precedida pelo procedimento de demarcação (‘riscar a barra’) de pontos que iam desde as margens do Lago do Bacopari, atravessando toda a faixa de restinga até chegar ao mar. Recaía esse privilégio sobre alguns notáveis do assentamento de Barra de Maricá. Verdadeira casta sacerdotal, guardiães da barra, exibiam, a cada abertura da barra nativa , com a prudência e a sapiência daqueles que têm o direito de se pronunciar em tais ocasiões, sua tekhné . Era preciso ‘curar’ a lagoa. Suas águas precisavam ser renovadas e fertilizadas por aquelas do mar. O phármakon era por eles conhecido e sua justa medida, administrada com todo o rigor conferia, sazonalmente, vida àquelas águas - lavoura do pescador.
"A ‘Cidade de São Bento’ basculou para dentro do sistema muito mais do que a utopia onipotente de Lúcio Thomé Feteira. Com ela veio junto a cizânia e o desespero daqueles que, impotentes, renunciaram à sua condição de produtores ou simplesmente abandonaram suas casas e o lugar onde deixaram seus ‘umbigos enterrados’.
"Os elementos integrantes do sistema produziram arranjos diante desse acontecimento com o intuito de superarem o cisma dando continuidade a um modo possível de convivência com as alterações e mutações a que foram submetidas as estruturas locais.
"Penso narrar ao longo de minha tese todo o processo dramático e aflitivo a que foram e estão submetidos os assentamentos de pescadores de Maricá. Esse empreendimento requer uma certa estratégia que assegure ao mesmo tempo a boa compreensão do sistema em sua totalidade e garanta, pela propriedade de tratamento dos dados etnográficos, o alcance analítico necessário para o entendimento da questão da produção dramática da identidade social em contextos específicos.
"O quadro geral da argumentação foi esboçado. O problema agora é constituir o mundo de que falávamos no início, as palavras virão quase por si sós. Narrar é pensar com os dedos e não posso continuar sem ter definido um modelo específico de leitor, pois necessito saber, antes de mais nada, se o meu convite para mergulhar no contexto etnográfico de uma pequena aldeia de pescadores às margens do Lago Grande de Maricá, será aceito".
Quando vi concluída a genealogia, compreendi que a pesquisa de campo tinha-se encerrado, para mim. De algum modo, tal circunstância ficou-me na memória sempre associada aum episódio.
Muita gente foi até minha casa olhar o imenso quadro genealógico, cheio de linhas coloridas, na parede da sala. Houve, naturalmente, comentários. Cada um tratava de localizar-se e aos seus, no diagrama, o que levou, eventualmente, a retificações do mesmo. Em geral, porém, o, sob determinados aspectos, monstruoso dispositivo, não parecia espantar ninguém.
Recordo, no entanto; que, ao final da tarde do primeiro dia, apareceu “Bengo”, Antonio Breve Marins. Trazia consigo uma das netas. Depois de ouvir minhas explicações sobre a natureza do quadro, declarou, com solenidade, o chapéu encostado ao peito, que aquilo era “uma coisa muito importante” que eu havia feito por eles. Deteve-se a olhar o labirinto genealógico dosMarins. Mostrou à neta onde se encontravam o seu nome e o dela. Em seguida agradeceu, despedindo-se, com algumas palavras mais, visivelmente emocionado. A partir daí desencadeou-se o fluxo das visitas.
Desse dia em diante, aconteceram duas coisas. A primeira delas correspondeu a uma mudança radical da minha presença na Zacarias. Continuei a frequentá-la, não mais como pesquisador, entretanto. Passava lá os fins de semana, os feriados e as férias como um veranista, adotado pelos zacarieiros. Tinha-me transformado, pois, numa espécie de estrangeiro de dentro 55.
O segundo fato relevante foi a decisão de elaborar o projeto, anteriormente apresentado. Com isso, vi-me lançado a uma nova tarefa, em tudo e por tudo distinta da pesquisa propriamente dita: a de escrever, ou de preparar-me para escrever.
A propósito dessa nova etapa do ciclo etnográfico, não posso senão concordar com Michel de Certeau, quando observa que “a construção de uma escrita (no sentido amplo de uma organização de significante) é uma passagem, sob muitos aspectos, estranha” 56.
Com efeito, esse deslocamento do universo aberto da pesquisa desemboca, fatalmente, naquilo que Henri-Irenée Marrou, referindo-se ao discurso histórico-gráfico, denominaa servidão da escrita 57.
Também a etno-grafia se subordina à lei dos discursos escriturários, mediante a qual as regras da prática, às quais se subordina o trabalho-de-campo, terminam por inverter-se. Assim, por exemplo, a escrita prescreve “como início aquilo que na realidade é um ponto de chegada, ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa” 58. A segunda imposição, que se acrescenta à anterior, estabelece que, sendo embora interminável a busca, o texto deve estruturar-se em vista de um fim ou fecho, prefigurado desde o começo. A terceira e última prescrição do texto escrito sendo sua plenitude, determina à tarefa etnográfica sejam preenchidas, ou obliteradas, “as lacunas que constituem, ao contrário, o próprio princípio da pesquisa, sempre aguçada pela falta” 59.
Como toda e qualquer disciplina, também a antropologia “mantém sua ambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de uma pesquisa científica” 60. Assim, vemo-nos obrigados a levar para o campo determinados instrumentos conceituais, e somos instados a expor e
55 Esse período compreendeu, grosso modo, os anos de 1987 e 1988, encerrando-se em fevereiro de 1989.
56 Certeau, 1982:94.
57 apud , Certeau, idem:ibidem .
58 Certeau, idem:ibidem .
59 Certeau, idem:ibidem .
60 Certeau, 1982:70.
a dar conta dos mesmos no pórtico da nossa tarefa escriturária. Por isso, convém dedicar-lhes, antesde nos embrenhar-mos na etnografia, alguma atenção.
Continua amanhã.
6. A Proposta
Era esse o meu estado, quando, no início do ano de 1987, expus, na parede da sala de minha casa, o quadro genealógico completo do povoado, para pouco depois inscrever-me no curso de doutoramento da Universidade de São Paulo, com uma proposta de projeto - “Um Evento Social Paradigmático e seu Contexto Etnográfico: a dramatização da abertura-da-barra entre os pescadores de Maricá/RJ”: 54
"O ofício de etnólogo guarda com a arte da narrativa um parentesco intrigante. Afinal, o exercício de ambos supõe o desejo manifesto de um diálogo, no sentido radical do termo. Nossas etnografias apresentam-se tão indissoluvelmente ancoradas em nossas vidas que seria de todo inútil buscar nelas mais do que o simplesmente verossímil.
"Sei perfeitamente bem que este juízo não é partilhado pela unanimidade dos cientistas sociais. No entanto, estou seguro de contar com a adesão de inúmeros colegas na edificação de teorias que não pretendam, uma vez mais, naturalizar o mundo social. Prefiro a alternativa mais generosa de conceber a ciência social como ciência empírica do significado, rejeitando os lugares - comuns dos reducionismos deterministas acalentados pela razão prática.
"Adotar esta perspectiva é menos o fruto de uma pretensão de refutar teorias sociológicas de extração naturalista, do que o desejo e a necessidade de rever conceitos e categorias quando o objeto de nossa investigação se impõe resistente. É
52 A propósito, consulte-se Gluckman (1963:307-316). Em Zacarias, a “fofoca” é, apropriadamente, referida como “política” (“Aí começou aquela política...”).
53 Participaram, além de Denise Maria Duque Estrada e Mariana Ciavatta Pantoja Franco, “Maninha” (filhade “Mieca” e “Ita”) e “Déia” (filha de “Beco” e Ruth).
54 O que segue é a íntegra da proposta de projeto com que a Profª Dra. Luciana Pallestrini me aceitou como candidato ao doutoramento em Antropologia, após longa entrevista realizada no seu gabinete, no MuseuPaulista, em 12 de fevereiro de 1987. Na ocasião, apresentei-lhe, e aos demais membros da banca, todo o material de campo relevante, inclusive as genealogias.
reconhecer não só as limitações de nossas teorias historicamente dadas, mas admitir nossas intuições como socialmente mediatizadas. “ Uma visão não empiricista do trabalho-de-campo na tradição dos estudos antropológicos, tem contribuído, significativamente, para a aceitação de uma postura mais relativizadora não só do mundo dos fenômenos gerais da vida social, como também das próprias teorias que empregamos na tentativa de sua compreensão.
"Durante os últimos dez anos venho realizando e orientando pesquisas entre grupos de pescadores no Estado do Rio de Janeiro. Essa atividade, mais recentemente, tem sido objeto sistemático e focalizado de atenção, no exame extenso dos processos sociais em curso na região das lagoas litorâneas, sobretudo no Município de Maricá.
"O quadro estereotipado que se delineia com o acelerado processo de urbanização de toda área, não é muito distinto, ao que tudo indica, daquele que vem ocorrendo nas últimas décadas ao longo de nosso litoral. O turismo, essa curiosa topofilia , com suas derivações e variações sazonais, além de trazer alterações na morfologia social dos lugares, segrega um desejo de permanência capaz de gerar uma verdadeira topofobia , ao redefinir e potenciar sistemas de representações concorrentes.
"A paisagem e a poética dos lugares é função do conjunto de valores que costumamos emprestar-lhes. Seus significados, por isso mesmo, são cambiantes e mutáveis. O recente incremento da ocupação urbana em Maricá espelha os conflitos inerentes a tal processo.
"O caso de Zacarias, assentamento de pescadores às margens do Lago Grande, seja pela expressividade que detém no sistema, seja pela profundidade histórica que ali assumem os conflitos derivados da forma de ocupação referida, é exemplar em todos os sentidos. É a partir dele e através da perspetiva que oferece de leitura do sistema de relações vigentes na região, que pretendo desenvolver meus argumentos e dar consistência a um projeto de pesquisa.
"Tudo já foi pensado alguma vez, diz Goethe, só o que precisamos fazer é pensá-lo mais outra vez. Tenho sempre em conta essa afirmativa quando ouso expor alguma questão ou formular um problema, pois toda a tarefa do etnógrafo consiste em permanentemente reinventar o mundo. Não qualquer mundo, porque o ofício supõe, como já disse, uma relação dialógica, portanto referida a no mínimo dois sujeitos, dois modos de pensar, duas formas possíveis do discurso.
"Para contar, sugere-nos Umberto Eco, é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores. Pretendo seguir a risca a recomendação erudita: Rem tene, verba sequentur - tenha (a coisa) isso, as palavras virão. Ora, isso precisa ser definido caso a caso quando se trata de apreender contextualmente o que isso efetivamente quer dizer. Portanto, ao inspecionar a assertiva latina em seu modo acusativo, retornamos ao problema deconsiderar, no âmbito da descrição etnográfica, as coisas em sua dimensão narrativa, quer dizer: socialmente validadas.
"Daí resulta que o etnógrafo não só está impedido de transmitir o puro ‘em si’ da coisa, como seria vão dedicar tanto esforço para simplesmente fazer do ofício relatório ou informação. Muito ao contrário, mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela, pois, tal qual o artesão, é assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro, como nos ensina Walter Benjamin.
"Ouvir uma história é pôr-se a caminho na companhia daquele que sabe; mesmo aquele que não teve o prazer do evento narrado, ao lê-lo não pode subtrair-se dessa companhia do narrador. O conhecimento etnográfico, tal qual a arte da narração, resulta do tempo. Não do instante homogêneo, mas da sucessão de eventos que vão tramando e deixam entrever o seu objeto. Vou tentar, em poucas palavras, fornecer uma visão geral do setting onde serão, pouco a pouco, introduzidos os personagens com seus desempenhos singulares.
"Quem chega a Zacarias começa logo a compreender, ou pelos menos a suspeitar, que acontecimentos recentes produziram efeitos indesejáveis para grande parte de seus moradores. Não é preciso grande esforço nem perspicácia, pois as referências são imediatas. Qualquer um é capaz de desfiar um sem número de razões para justificar não só um modo de vida, mas uma disposição espacial peculiar do assentamento.
"Zacarias está dicotomizada, dividida. Sua morfologia social traduz uma topografia moral. Entre a Ponta do Capim e a Ponta da Pedra, topônimos locais, estão aqueles que ficaram na ‘luta do tostão contra o milhão’. Mais acima, entre o cômoro da lagoa e as taboas do Lago do Bacopari, inscrevem-se os signos de uma grande cisão. Estão ali ‘os que se renderam’ juntamente com ‘os que se venderam’. Essa retórica dos motivos desenha e circunscreve na paisagem, a história de uma saga. A saga dos pescadores da Lagoa de Maricá do ponto de vista do assentamento de Zacarias. Dizer ponto de vista implica, necessariamente, assumir uma mediatização. Esta, por sua vez,institui um olhar.
"As ‘casas de cima’ vis-à-vis as ‘casas de baixo’opõem de forma complementar três respostas, ou três modos de escolher: a rendição, a venalidade e a permanência. Por detrás do bucolismo nostálgico que essa área da restinga traduz, constata-se a convivência e o contraste que processos sociais de elevados custos acarretam para diferentes dimensões do sistema de relações de todo o complexo lagunar que constitui, de maneira genérica, a Lagoa de Maricá.
"Tudo, segundo a perspectiva dos que ficaram (‘os que lutaram’), teve início há aproximadamente quarenta anos atrás. Lúcio Thomé Feteira - português, industrial, casado, residente em Lisboa, Portugal, conseguira do então interventor do Estado, Ernani do Amaral Peixoto, a concessão para explorar as areias das dunas de Maricá, visando seu aproveitamento na Companhia Vidreira de sua propriedade, situada no Município de São Gonçalo. Passa ano, entra ano, nosso industrial foi além, muito além do que havia sido concedido. Arroga-se o direito de senhor e legítimo possuidor de várias glebas de terra, remanescentes da antiga ‘Fazenda de São Bento’, investindo sobre os moradores de Zacarias na tentativa de erradicá-los daquela área para o desenvolvimento do ambicioso projeto de construção da ‘Cidade de São Bento’. Toda a concepção urbanística vem assinada por prestigioso arquiteto cujo nome poderia perfeitamente jamais ter sido associado a tal empresa. Lúcio Costa e sua equipe legitimava, com o peso de seu estrocriativo o acontecimento mais violento e dramático que deveria ser digerido pelas estruturas locais. É desse acontecimento e dessas estruturas que nos falam, incessantemente, os moradores dos diversos assentamentos de pescadores do entorno das lagoasde Maricá.
"‘A luta do tostão contra o milhão’ é muito menos a história de um cisma na comunidade de Zacarias do que a expressão dramática da produção de uma identidade. O projeto da ‘Cidade de São Bento’ supunha uma alteração significativa no ecossistema lagunar, além da intervenção catastrófica na vegetação existente em toda faixa de restinga. Do ponto de vista sociológico, no entanto, a alteração mais crucial foi aquela que resultou da construção de uma estrada litorânea que impedia a abertura sazonal da barra oceânica. Com isto, com essa simples estrada, estava colocada em questão a reprodução da identidade social de pescador da Lagoa de Maricá.
"A abertura de barra é o que poderia ser considerado, num contexto etnográfico determinado, um evento social paradigmático. Um evento a partir do qual todo o sistema de relações vigentes na região pode ser apreendido sinteticamente. A ‘barra’ desempenha aqui a possibilidade de totalização do sistema em sua unidade dramática. Por isso mesmo é pedagógica no entendimento dos processos sociais em curso. Constitui uma verdadeira arkhé , princípio, matéria primordial na elaboração dramática da identidade social dos pescadores da lagoa.
"A estrada impediu o desempenho desse rito extremamente expressivo. No entanto, sua presença nas formulações discursivas, narrativas, é constante. Ato técnico e expressivo, a abertura da barra era precedida pelo procedimento de demarcação (‘riscar a barra’) de pontos que iam desde as margens do Lago do Bacopari, atravessando toda a faixa de restinga até chegar ao mar. Recaía esse privilégio sobre alguns notáveis do assentamento de Barra de Maricá. Verdadeira casta sacerdotal, guardiães da barra, exibiam, a cada abertura da barra nativa , com a prudência e a sapiência daqueles que têm o direito de se pronunciar em tais ocasiões, sua tekhné . Era preciso ‘curar’ a lagoa. Suas águas precisavam ser renovadas e fertilizadas por aquelas do mar. O phármakon era por eles conhecido e sua justa medida, administrada com todo o rigor conferia, sazonalmente, vida àquelas águas - lavoura do pescador.
"A ‘Cidade de São Bento’ basculou para dentro do sistema muito mais do que a utopia onipotente de Lúcio Thomé Feteira. Com ela veio junto a cizânia e o desespero daqueles que, impotentes, renunciaram à sua condição de produtores ou simplesmente abandonaram suas casas e o lugar onde deixaram seus ‘umbigos enterrados’.
"Os elementos integrantes do sistema produziram arranjos diante desse acontecimento com o intuito de superarem o cisma dando continuidade a um modo possível de convivência com as alterações e mutações a que foram submetidas as estruturas locais.
"Penso narrar ao longo de minha tese todo o processo dramático e aflitivo a que foram e estão submetidos os assentamentos de pescadores de Maricá. Esse empreendimento requer uma certa estratégia que assegure ao mesmo tempo a boa compreensão do sistema em sua totalidade e garanta, pela propriedade de tratamento dos dados etnográficos, o alcance analítico necessário para o entendimento da questão da produção dramática da identidade social em contextos específicos.
"O quadro geral da argumentação foi esboçado. O problema agora é constituir o mundo de que falávamos no início, as palavras virão quase por si sós. Narrar é pensar com os dedos e não posso continuar sem ter definido um modelo específico de leitor, pois necessito saber, antes de mais nada, se o meu convite para mergulhar no contexto etnográfico de uma pequena aldeia de pescadores às margens do Lago Grande de Maricá, será aceito".
* * *
Não mencionei as circunstâncias nas quais esta proposta de projeto foi concebidapelo gosto do detalhe auto-biográfico. Quis precisar e qualificar o momento, porque representou uma inflexão decisiva na trajetória do meu trabalho.Quando vi concluída a genealogia, compreendi que a pesquisa de campo tinha-se encerrado, para mim. De algum modo, tal circunstância ficou-me na memória sempre associada aum episódio.
Muita gente foi até minha casa olhar o imenso quadro genealógico, cheio de linhas coloridas, na parede da sala. Houve, naturalmente, comentários. Cada um tratava de localizar-se e aos seus, no diagrama, o que levou, eventualmente, a retificações do mesmo. Em geral, porém, o, sob determinados aspectos, monstruoso dispositivo, não parecia espantar ninguém.
Recordo, no entanto; que, ao final da tarde do primeiro dia, apareceu “Bengo”, Antonio Breve Marins. Trazia consigo uma das netas. Depois de ouvir minhas explicações sobre a natureza do quadro, declarou, com solenidade, o chapéu encostado ao peito, que aquilo era “uma coisa muito importante” que eu havia feito por eles. Deteve-se a olhar o labirinto genealógico dosMarins. Mostrou à neta onde se encontravam o seu nome e o dela. Em seguida agradeceu, despedindo-se, com algumas palavras mais, visivelmente emocionado. A partir daí desencadeou-se o fluxo das visitas.
Desse dia em diante, aconteceram duas coisas. A primeira delas correspondeu a uma mudança radical da minha presença na Zacarias. Continuei a frequentá-la, não mais como pesquisador, entretanto. Passava lá os fins de semana, os feriados e as férias como um veranista, adotado pelos zacarieiros. Tinha-me transformado, pois, numa espécie de estrangeiro de dentro 55.
O segundo fato relevante foi a decisão de elaborar o projeto, anteriormente apresentado. Com isso, vi-me lançado a uma nova tarefa, em tudo e por tudo distinta da pesquisa propriamente dita: a de escrever, ou de preparar-me para escrever.
A propósito dessa nova etapa do ciclo etnográfico, não posso senão concordar com Michel de Certeau, quando observa que “a construção de uma escrita (no sentido amplo de uma organização de significante) é uma passagem, sob muitos aspectos, estranha” 56.
Com efeito, esse deslocamento do universo aberto da pesquisa desemboca, fatalmente, naquilo que Henri-Irenée Marrou, referindo-se ao discurso histórico-gráfico, denominaa servidão da escrita 57.
Também a etno-grafia se subordina à lei dos discursos escriturários, mediante a qual as regras da prática, às quais se subordina o trabalho-de-campo, terminam por inverter-se. Assim, por exemplo, a escrita prescreve “como início aquilo que na realidade é um ponto de chegada, ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa” 58. A segunda imposição, que se acrescenta à anterior, estabelece que, sendo embora interminável a busca, o texto deve estruturar-se em vista de um fim ou fecho, prefigurado desde o começo. A terceira e última prescrição do texto escrito sendo sua plenitude, determina à tarefa etnográfica sejam preenchidas, ou obliteradas, “as lacunas que constituem, ao contrário, o próprio princípio da pesquisa, sempre aguçada pela falta” 59.
Como toda e qualquer disciplina, também a antropologia “mantém sua ambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de uma pesquisa científica” 60. Assim, vemo-nos obrigados a levar para o campo determinados instrumentos conceituais, e somos instados a expor e
55 Esse período compreendeu, grosso modo, os anos de 1987 e 1988, encerrando-se em fevereiro de 1989.
56 Certeau, 1982:94.
57 apud , Certeau, idem:ibidem .
58 Certeau, idem:ibidem .
59 Certeau, idem:ibidem .
60 Certeau, 1982:70.
a dar conta dos mesmos no pórtico da nossa tarefa escriturária. Por isso, convém dedicar-lhes, antesde nos embrenhar-mos na etnografia, alguma atenção.
Continua amanhã.
Comentários
Postar um comentário
ITAIPUAÇU SITE - MÍDIA LIVRE E OFICIAL DE NOTÍCIAS DE MARICÁ - O Itaipuaçu Site reserva o direito de não publicar comentários anônimos ou de conteúdo duvidoso. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a nossa opinião.