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5. O Estrangeiro de Dentro
O ano de 1986 encontrou-me transformado em morador da Praia de Zacarias. Não que minha intermitência tivesse cedido à continuidade, no campo. Segui freqüentando o povoado nos fins-de-semana, nos feriados, nas férias escolares e, eventualmente, nos chamados “dias úteis”, na medida em que o permitiam meus afazeres.
O fato novo, a que se deveu esta mudança radical de minha inserção no assentamento, foi ter alugado uma casa. Autêntica novidade. Para mim, porque, desse modo, deixava o meu pouso no rancho , passando a ocupar uma casa-de-família. Para os zacarieiros, porque, pela primeira vez, se estabelecia no povoado alguém de fora , sem que isto acontecesse em virtude de laços de parentesco ou afinidade 51.
50 O evento realizou-se, em duas etapas, nos dias 14 e 21 de maio de 1986, na Câmara Municipal de Maricá. Discutiram os problemas da gestão do meio-ambiente vereadores, representantes das associações comunitárias, técnicos da FEEMA e da SERLA e membros do Ministério Público (Curadoria do Meio Ambiente). O tema principal dos debates foi a APA de Maricá (Cf. FEEMA, 1986).
51 A casa tinha sido, na realidade, habitada, anteriormente, por uma “gringa”, como afirmavam. Chamava-se Elza Kleiss, de origem alemã, portanto. Mantinha a casa, na qual vivia com Arnulfo, filho de “Cida” (Alcides Evaristo da Costa). Após sua morte, Arnulfo, do qual se diz que
Quando me refiro à casa-de-família, isto tem um duplo sentido. Tratava-se, com efeito, de uma casa que eu habitava com minha família. Além disso, no entanto, esta casa, da qual nos tornamos moradores, pertencia ao conjunto das casas antigas do assentamento, tendo sido propriedade, outrora, de um ramo da família da Costa , por sua vez aparentado com os Breves de Marins.
A maneira pela qual cheguei a esta casa é, ela mesma, significativa e merece ser contada. Trata-se de uma história com duas vertentes. A primeira relata como o imóvel veio se tornar disponível para mim, enquanto a segunda dá conta das razões que me dispuseram a adotá-la como residência.
Os antigos proprietários haviam cedido às pressões da Companhia. Temerosos de verem sua casa demolida, trataram de realizar o valor possível, alienando sua posse a um funcionário aposentado do Ministério da Marinha, residente na “vila”. Este, que não pretendia habitá-la, saiu em busca de um inquilino. Sabia, no entanto, que os zacarieiros não aceitariam qualquer um. Por isso, foi buscar conselho no povoado, junto aos vizinhos imediatos do imóvel. Desse modo, veio a ter com os irmãos Marques (“Mieca” e “Neia”), netos de Juca Tomás e sobrinhos de Henrique, dos quais partiu a minha indicação.
O outro lado da história refere-se à minha decisão de alugar uma casa na Zacarias. Como sempre, vários motivos concorreram para o mesmo fim. Havia, em primeiro lugar, a situação no rancho que era propícia, apesar das espartanas acomodações que proporcionava. A convivência com Henrique contava muito. Nossas conversas continuavam a render frutos. E ainda por cima, haviamo-nos tornado próximos. “Poeira”, cuja saúde fraquejava, parece ter manifestado, à minha revelia e sem o meu saber, a intenção de fazer de mim o seu herdeiro no rancho . Este fato, que custei a descobrir, valeu-me uma pertinaz, embora disfarçada, hostilidade, por parte de “Beco”, cujas pretensões sucessórias ao patrimônio do tio eram conhecidas. Tudo sob o manto das relações jocosas, mas nem por isso menos claro. Daí resultou, para mim, um duplo desconforto. Incomodava-me ser tratado como um provável usurpador, da mesma forma que me aborrecia o assédio de “Beco” ao espólio do tio, de um modo que me parecia agourento e desrespeitoso.
Ao mesmo tempo, a presença mais constante das minhas estagiárias, no campo,começou a suscitar a necessidade de instalações menos dependentes da hospitalidade local. A essa busca de autonomia somava-se, ainda, um outro fator, menos utilitário, porém não menos ponderável - o apego a um lugar aprazível e de grande beleza, capaz, de satisfazer os ideais escapistas de qualquer habitante da cidade. Do lado prático, porém, tampouco faltavam motivos. A intensificação das atividades preparatórias do 1º Cabildo Aberto aconselhavam a existência de
“não gostava de trabalhar”, vendeu a casa para um morador da Vila, de quem, por sua vez, aaluguei.
uma base de operação na Zacarias, função que nem o rancho de “Henrique”, nem a casa de Brígida, podiam suprir adequadamente, sem falar nos transtornos que tal uso traria aos dois.
Assim, tomei, finalmente, a resolução de alugar o imóvel, sito à Avenida Lucio José de Marins, Nº 12. Era uma casa caiada de branco, com portas e janelas azuis, coberta por duas águas, em telha vã. Tinha, além da sala, dois quartos, uma “varanda” interna, através da qual se chegava ao banheiro e à cozinha, com seu fogão de lenha. Ficava logo na entrada do assentamento, um pouco abaixo da crista do cômoro da lagoa, olhando para esta, de costas para o mar.
Estava escrito, porém, que essa casa não se converteria num mero escritório-de-campo, embora viesse, também, a cumprir esta função. Com efeito, ao casar-me com uma das pesquisadoras, passamos a habitá-la como marido e mulher, e com minha enteada, à qual, vinham juntar-se, eventualmente, os meus filhos.
A partir daí, minhas relações com Zacarias entraram em outra fase. Passamos a participar da vida do povoado como uma família. Freqüentávamos as casas de nossos conhecidos e amigos, os quais podíamos, agora, receber. Iamos a aniversários, batizados, casamentos, bailes e velórios. Em suma, participávamos das relações de vizinhança, no dia-a-dia, nas festas e nas comunidades de aflição.
Um balanço dessa transformação mostra que houve perdas e ganhos. O prejuízo mais imediato foi o meu afastamento do rancho, que deixei de frequentar com a assiduidade de antes. Acho que Henrique se ressentiu dessa distância. Eu, com certeza, perdi grandes oportunidades de aprofundar-me no saber naturalístico, em torno do qual nossas conversas se adensavam. Desse modo, acabei, também, por afastar-me da pescaria, o que, a curto prazo, teve reflexos sôbre minhas recém-adquiridas habilidades, neste campo.
De tudo isso, advieram, no entanto, benefícios que, na minha qualidade de pesquisador, não podia desprezar. A casa introduziu-me de vez no domínio genealógico, que era o segundo grande eixo do meu projeto. O assunto parecia suscitar-se plenamente a partir dessa nova posição. Pude adquirir, então, uma perspectiva mais abrangente da assim chamada “comunidade”. Creio que a própria localização da casa, meio isolada, a montante do povoado, como um posto de observação, não foi de todo inocente nesse relativo distanciamento. O fato é que comecei a ver com mais crueza as peculiaridades dos arranjos sociológicos que viabilizavam a Zacarias. Fui quase obrigado a tomar conhecimento do que, até então, permanecera na sombra; das muitas querelas; do azedume que constituía seu rastro infalível; dos nem sempre edificantes dramas domésticos; do moralismo agressivo dos pasquins; das ambições mal disfarçadas; das invejas corrosivas; das acusações veladas de adultério e incesto; da maledicência miúda de todo dia, tanto quanto das imputações graves, algumas delas caluniosas.
A “fofoca”, esse poderoso mecanismo de controle social 52, entretanto, abriu-me, de par em par, as portas das relações de parentesco. Graças à participação feminina, sobretudo, tomou impulso a revisão dos dados de censo e, com ela, foram-se completando e corrigindo os diagramas de parentesco 53. Assim, começou a tomar forma, aos poucos, um quadro genealógico integral dos habitantes da Zacarias. Tudo isso, porém, teve sobre mim um efeito inesperado, e, certamente, indesejado. De forma imperceptível, a princípio, mas acelerando-se de maneira inquietante com o passar dos meses, meu encantamento participativo, doença infantil de todo etnógrafo, foi cedendo lugar ao tédio e à desilusão. Permanecer na Zacarias tornou-se, para mim, uma experiência penosa, que nem toda a sutileza alcançada pelas conquistas da etnografia era capaz de mitigar.
Continua amanhã.
5. O Estrangeiro de Dentro
O ano de 1986 encontrou-me transformado em morador da Praia de Zacarias. Não que minha intermitência tivesse cedido à continuidade, no campo. Segui freqüentando o povoado nos fins-de-semana, nos feriados, nas férias escolares e, eventualmente, nos chamados “dias úteis”, na medida em que o permitiam meus afazeres.
O fato novo, a que se deveu esta mudança radical de minha inserção no assentamento, foi ter alugado uma casa. Autêntica novidade. Para mim, porque, desse modo, deixava o meu pouso no rancho , passando a ocupar uma casa-de-família. Para os zacarieiros, porque, pela primeira vez, se estabelecia no povoado alguém de fora , sem que isto acontecesse em virtude de laços de parentesco ou afinidade 51.
50 O evento realizou-se, em duas etapas, nos dias 14 e 21 de maio de 1986, na Câmara Municipal de Maricá. Discutiram os problemas da gestão do meio-ambiente vereadores, representantes das associações comunitárias, técnicos da FEEMA e da SERLA e membros do Ministério Público (Curadoria do Meio Ambiente). O tema principal dos debates foi a APA de Maricá (Cf. FEEMA, 1986).
51 A casa tinha sido, na realidade, habitada, anteriormente, por uma “gringa”, como afirmavam. Chamava-se Elza Kleiss, de origem alemã, portanto. Mantinha a casa, na qual vivia com Arnulfo, filho de “Cida” (Alcides Evaristo da Costa). Após sua morte, Arnulfo, do qual se diz que
Quando me refiro à casa-de-família, isto tem um duplo sentido. Tratava-se, com efeito, de uma casa que eu habitava com minha família. Além disso, no entanto, esta casa, da qual nos tornamos moradores, pertencia ao conjunto das casas antigas do assentamento, tendo sido propriedade, outrora, de um ramo da família da Costa , por sua vez aparentado com os Breves de Marins.
A maneira pela qual cheguei a esta casa é, ela mesma, significativa e merece ser contada. Trata-se de uma história com duas vertentes. A primeira relata como o imóvel veio se tornar disponível para mim, enquanto a segunda dá conta das razões que me dispuseram a adotá-la como residência.
Os antigos proprietários haviam cedido às pressões da Companhia. Temerosos de verem sua casa demolida, trataram de realizar o valor possível, alienando sua posse a um funcionário aposentado do Ministério da Marinha, residente na “vila”. Este, que não pretendia habitá-la, saiu em busca de um inquilino. Sabia, no entanto, que os zacarieiros não aceitariam qualquer um. Por isso, foi buscar conselho no povoado, junto aos vizinhos imediatos do imóvel. Desse modo, veio a ter com os irmãos Marques (“Mieca” e “Neia”), netos de Juca Tomás e sobrinhos de Henrique, dos quais partiu a minha indicação.
O outro lado da história refere-se à minha decisão de alugar uma casa na Zacarias. Como sempre, vários motivos concorreram para o mesmo fim. Havia, em primeiro lugar, a situação no rancho que era propícia, apesar das espartanas acomodações que proporcionava. A convivência com Henrique contava muito. Nossas conversas continuavam a render frutos. E ainda por cima, haviamo-nos tornado próximos. “Poeira”, cuja saúde fraquejava, parece ter manifestado, à minha revelia e sem o meu saber, a intenção de fazer de mim o seu herdeiro no rancho . Este fato, que custei a descobrir, valeu-me uma pertinaz, embora disfarçada, hostilidade, por parte de “Beco”, cujas pretensões sucessórias ao patrimônio do tio eram conhecidas. Tudo sob o manto das relações jocosas, mas nem por isso menos claro. Daí resultou, para mim, um duplo desconforto. Incomodava-me ser tratado como um provável usurpador, da mesma forma que me aborrecia o assédio de “Beco” ao espólio do tio, de um modo que me parecia agourento e desrespeitoso.
Ao mesmo tempo, a presença mais constante das minhas estagiárias, no campo,começou a suscitar a necessidade de instalações menos dependentes da hospitalidade local. A essa busca de autonomia somava-se, ainda, um outro fator, menos utilitário, porém não menos ponderável - o apego a um lugar aprazível e de grande beleza, capaz, de satisfazer os ideais escapistas de qualquer habitante da cidade. Do lado prático, porém, tampouco faltavam motivos. A intensificação das atividades preparatórias do 1º Cabildo Aberto aconselhavam a existência de
“não gostava de trabalhar”, vendeu a casa para um morador da Vila, de quem, por sua vez, aaluguei.
uma base de operação na Zacarias, função que nem o rancho de “Henrique”, nem a casa de Brígida, podiam suprir adequadamente, sem falar nos transtornos que tal uso traria aos dois.
Assim, tomei, finalmente, a resolução de alugar o imóvel, sito à Avenida Lucio José de Marins, Nº 12. Era uma casa caiada de branco, com portas e janelas azuis, coberta por duas águas, em telha vã. Tinha, além da sala, dois quartos, uma “varanda” interna, através da qual se chegava ao banheiro e à cozinha, com seu fogão de lenha. Ficava logo na entrada do assentamento, um pouco abaixo da crista do cômoro da lagoa, olhando para esta, de costas para o mar.
Estava escrito, porém, que essa casa não se converteria num mero escritório-de-campo, embora viesse, também, a cumprir esta função. Com efeito, ao casar-me com uma das pesquisadoras, passamos a habitá-la como marido e mulher, e com minha enteada, à qual, vinham juntar-se, eventualmente, os meus filhos.
A partir daí, minhas relações com Zacarias entraram em outra fase. Passamos a participar da vida do povoado como uma família. Freqüentávamos as casas de nossos conhecidos e amigos, os quais podíamos, agora, receber. Iamos a aniversários, batizados, casamentos, bailes e velórios. Em suma, participávamos das relações de vizinhança, no dia-a-dia, nas festas e nas comunidades de aflição.
Um balanço dessa transformação mostra que houve perdas e ganhos. O prejuízo mais imediato foi o meu afastamento do rancho, que deixei de frequentar com a assiduidade de antes. Acho que Henrique se ressentiu dessa distância. Eu, com certeza, perdi grandes oportunidades de aprofundar-me no saber naturalístico, em torno do qual nossas conversas se adensavam. Desse modo, acabei, também, por afastar-me da pescaria, o que, a curto prazo, teve reflexos sôbre minhas recém-adquiridas habilidades, neste campo.
De tudo isso, advieram, no entanto, benefícios que, na minha qualidade de pesquisador, não podia desprezar. A casa introduziu-me de vez no domínio genealógico, que era o segundo grande eixo do meu projeto. O assunto parecia suscitar-se plenamente a partir dessa nova posição. Pude adquirir, então, uma perspectiva mais abrangente da assim chamada “comunidade”. Creio que a própria localização da casa, meio isolada, a montante do povoado, como um posto de observação, não foi de todo inocente nesse relativo distanciamento. O fato é que comecei a ver com mais crueza as peculiaridades dos arranjos sociológicos que viabilizavam a Zacarias. Fui quase obrigado a tomar conhecimento do que, até então, permanecera na sombra; das muitas querelas; do azedume que constituía seu rastro infalível; dos nem sempre edificantes dramas domésticos; do moralismo agressivo dos pasquins; das ambições mal disfarçadas; das invejas corrosivas; das acusações veladas de adultério e incesto; da maledicência miúda de todo dia, tanto quanto das imputações graves, algumas delas caluniosas.
A “fofoca”, esse poderoso mecanismo de controle social 52, entretanto, abriu-me, de par em par, as portas das relações de parentesco. Graças à participação feminina, sobretudo, tomou impulso a revisão dos dados de censo e, com ela, foram-se completando e corrigindo os diagramas de parentesco 53. Assim, começou a tomar forma, aos poucos, um quadro genealógico integral dos habitantes da Zacarias. Tudo isso, porém, teve sobre mim um efeito inesperado, e, certamente, indesejado. De forma imperceptível, a princípio, mas acelerando-se de maneira inquietante com o passar dos meses, meu encantamento participativo, doença infantil de todo etnógrafo, foi cedendo lugar ao tédio e à desilusão. Permanecer na Zacarias tornou-se, para mim, uma experiência penosa, que nem toda a sutileza alcançada pelas conquistas da etnografia era capaz de mitigar.
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