Gente das Areias - Capítulo 4

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4. Cartas sem Enderêço: o hóspede 

     Após um interstício de aproximadamente um ano 37 , retomei o trabalho-de-campo, no Município de Maricá, em 1980, com uma pesquisa sobre hábitos alimentares no litoral fluminense 38.

37 Em 1979, dediquei-me ao Projeto “Apropriação de Espaços Coletivos para Fins de Lazer”, IBAM/FINEP. Daí resultou o livro Quando a Rua vira Casa , coeditado pelas duas instituições em 1981. 
38 Tratava-se do projeto "Alimentação e Ritual: os tabús alimentares e as práticas cerimoniais ligadas aos atos de comer em grupos de Niterói e das baixadas litorâneas/RJ", financiado pelo FNDE/MEC, e 

     Os resultados desse survey desenvolvido em três localidades da região - São José do Imbassaí, Zacarias e Espraiado, proporcionaram-me uma compreensão mais nítida da diversidade do sistema de relações, onde os povoados da restinga, como Zacarias, estavam inseridos. Pude, ao mesmo tempo, submeter os dados demográficos e genealógicos de 1978 a um processo de complementação e controle. Daí resultou o segundo censo da população de Zacarias, além de um primeiro esforço de síntese do material etnográfico consolidado.
     Adotei nessa época uma estratégia, que, inspirado num título de Plekhanov, batizei de “Cartas sem endereço”. Essas missivas, escritas no campo e dirigidas a um colega e amigo, ao qual foram eventualmente remetidas, serviram-me como uma espécie de repositório comum de dados etnográficos, rotina cotidiana, impressões, sentimentos e reflexões suscitadas no e pelo trabalho-de-campo.
     As “cartas sem enderêço”, não eram, pois, senão o meu diário de campo que não conseguia realizar como solilóquio, conforme a tradição anglosaxônica incorporada nos cânones do método antropológico. Em compensação, resultava-me fácil concebê-lo e concretizá-lo como um“diálogo” com alguém que me era próximo, afetiva e intelectualmente.
     Juntamente com os quinze dias de 1978, o período de campo que se estendeu ao longo de 1980-1981, mas, sobretudo este último ano, foi de grande importância para a pesquisa. Neste sentido, as “cartas sem endereço”, são um documento eloqüente da efervescência que caracterizou esta fase do trabalho etnográfico.
     Encontram-se aí, registrados de um jorro, e como atropelando-se uns aos outros, os mais diversos recortes da minha experiência em Maricá: flagrantes da vida no rancho e no povoado; observações sobre a morfologia e dinâmica social do assentamento; personagens da Zacarias que me serviram como informantes e interlocutores; notas esparsas do saber naturalístico local; dados sobre grandes eventos, como a abertura da barra e o conflito com a Companhia ; tateamentos, percalços e horas afortunadas da pesquisa-de-campo; indicações sobre minhas leituras e partidos teóricos; e, finalmente, o registro do penoso processo de familiarização com o universo da pesquisa, com seus distintos atores sociais, imersos numa problemática e temporalidade próprias.
     O resultado mais importante, dos muitos que esta etapa me permite contabilizar, no entanto, foi a configuração de um projeto propriamente dito para todo o empreendimento etnográfico. Com efeito, em 1981, pude conceber uma primeira forma estruturada da abordagem do meu assunto.

desenvolvido do Departamento de Ciências Sociais da UFF, no qual reingressei em 1979. Participavam ainda do projeto os colegas Wagner Neves Rocha e Almir dos Santos Abreu, além de estágiarios do Cursode Ciências Sociais. 

     Imaginava tratá-lo de acordo com um roteiro. Após a introdução de praxe, este determinava, ao longo de tres capítulos centrais, os temas básicos destinados à elaboração etnográfica: primeiro, uma descrição densa do ritual da abertura de barra ; segundo, uma análiseda morfologia social do assentamento da Zacarias, com foco principal na casa; e, em terceiro lugar, uma apreensão abrangente do sistema de relações que ligava entre sí a restinga, a “terra firme”, as“serras”, as lagunas e a “vila”, em Maricá, sem esquecer a inserção desta na dinâmica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
     Essas três linhas deviam, ao final, confluir num capítulo conclusivo, onde se discutiria o que, na época, me ocorreu chamar de “a função pedagógica do ritual”. Com essa expressão tentava, como percebo agora, referir-me a pelo menos três questões distintas, porém entrelaçadas. Queria, tomando como foco um processo ritual, refletir sobre sua relevância para a construção da identidade de pescador, para a reprodução de um sistema peculiar de relações sociais em torno da pesca lagunar, e para a compreensão das vicissitudes ecológicas das quais tanto a identidade quanto o sistema de relações dependiam.
     Em resumo, o que eu me perguntava era o que a abertura da barra era capaz de ensinar, tanto ao nativo quanto ao etnógrafo, para levantar, em seguida, a questão de como e porque o seu ensinamento calava fundo em ambos.
     Os anos subseqüentes foram marcados pelo esforço de reunir e consolidar um corpus etnográfico, suficientemente elaborado, para dar consistência a esse projeto. Foram empregados, além disso, na tarefa de maturação da abordagem teórica, bem como da análise e exegese do material de campo.
     Em 1983 identifico outro momento particularmente rico da pesquisa. Este ano ofereceu-me a oportunidade de observar in loco uma abertura-de-barra à maneira dos pescadores, embora não mais de um modo estritamente tradicional 39. Trouxe consigo, além disso, a realização de um terceiro censo de Zacarias, sem contar as diversas iniciativas de reflexão sistemática sobre o meu tema, na esfera acadêmica 40.
     Além disso, em conseqüência das minhas atividades de ensino, incorporou-se ao trabalho-de-campo, sob minha orientação, uma estudante, à qual caberia, no ano seguinte,desenvolver um projeto de iniciação científica, com vistas à obtenção de material para: “(1) delinear a trajetória de uma comunidade de pescadores a partir de suas representações; (2) propiciar

39 A SERLA participou da abertura , mobilizando seus engenheiros e máquinas. 
40 Entre elas a elaboração do projeto "A pesca artesanal no RJ: o sistema de representações e as práticas profissionais" (CNPq-GCS/UFF), coordenado pelo professor Luis de Castro Faria, e com a participação deRoberto Kant de Lima. Dessa época são, igualmente, as palestras sobre "A dramatização da abertura de barra e os assentamentos dos pescadores de Maricá" (Seminário Lagunas Litorâneas do Estado do Rio deJaneiro - FEEMA/RJ e UFF) e sobre "Artes e Tecnologia da Pesca" (Semana do Pescador - Pref. Mun. deCabo Frio - RJ). 

uma leitura do sistema de relações que caracteriza o modo básico do entorno; e (3), finalmente,apreender a dinâmica da mudança e suas implicações na estrutura e no modo de vida da comunidade 41.
     O contato com botânicos, zoólogos, limnólogos, geo-químicos e biólogos, no “Seminário sobre as Lagunas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro”, em 1983, iniciou um período de estimulantes debates com alguns colegas dessas áreas, durante os anos de 1984 e 1985 42.
     Em 1985, outra estudante começou a desenvolver, na Zacarias, o projeto “Disputa e Negociação: o direito costumeiro de uma comunidade de pescadores” 43. Neste mesmo ano, iniciou-se o quarto censo da população de Zacarias, com vistas à expansão e complementação das genealogias das famílias do povoado. Desse modo, foi possível abordar, mais de perto, o domínio das atividades e perspectivas femininas, incluindo a socialização das crianças, bem como as estratégias de ocupação do espaço, agenciadas pelas mulheres.
     Não deixa de ser significativa, para a posição e atuação destas últimas, na Zacarias, a fundação nesse mesmo período, do Centro Comunitário de Cultura e Lazer (CECLAZ) 44. Esta sociedade civil “sem fins lucrativos, políticos, raciais ou religiosos”, sediada “no bairro de Zacarias, no núcleo dos pescadores, na Barra de Maricá - 1º Distrito”, definia como sua área de atuação o “Bairro de Zacarias, no núcleo dos pescadores ali residentes, até a Barra”. Seus objetivos eram, segundo o artigo 4º dos Estatutos, os seguintes:
I. desenvolver e manter a união entre os moradores e amigos da área , visando o estudo e a obtenção de soluções para os problemas da comunidade e zelando pela melhoria e manutenção de sua qualidade de vida;
II. congregar os esforços de todos os moradores e amigos da área , na criação e desenvolvimento de atividades comunitárias;
III. propiciar o desenvolvimento cultural da população organizando reuniões sociais de natureza recreativa, cultural e de lazer ou outras atividades inerentes;

41 Projeto: "Zacarias Revisitada", CNPq-DCS/UFRJ, acadêmica Mariana Ciavatta Pantoja Franco. 
42 São dessa época as palestras sobre "Populações Humanas em Ambientes Lagunares (Deptº de Oceneanografia/UERJ) e sobre "Metodologia para Estudo de Lagunas: aspectos antropológicos"(FEEMA/RJ), em 1984 e 1985, respectivamente. 
43 Acadêmica Denise Maria Duque Estrada, Iniciação Científica, DCS/UFRJ. 44 A lista de presença da Assembléia Geral para aprovação dos Estatutos e eleição da primeira diretoria, em 1º de abril de 1984, é assinada por 20 pessoas, das quais 14 mulheres. Dos 11 cargos (Diretoria e Conselho Fiscal), 9 eram ocupados por mulheres, sendo que os dois únicos homens integravam o Conselho Fiscal. 

 IV. estimular o crescimento do Bloco Carnavalesco Unidos de Zacarias , como programa de suas atividades, promovendo festividades que contribuam para sua apresentação em desfiles;
§ Único. No cumprimento de seus objetivos o CECLAZ representará a comunidade perante as autoridades e órgãos federais, estaduais e municipais , bem como, promovendo, em juízo ou fora dele, as ações e medidas que se tornarem necessárias. (grifos meus).
     A ausência dos homens, entretanto, não se refletia, apenas, na sua fraca representação numérica, seja na Assembléia Geral, seja na primeira diretoria do CECLAZ. Surgia, também, com bastante clareza, na omissão de seus estatutos quanto ao Cruzeiro Futebol Clube, iniciativa dos homens e seu mais abrangente plano de organização social.
     E, no entanto, o CECLAZ e o “clube de futebol” não podiam ignorar-se, tendo o primeiro edificado sua sede nos fundos da sede do último. De um modo geral, parecia ter-se consagrado, aí, em que pese a contiguidade sócio-espacial, uma clivagem da representação do povoado. Ao “clube de futebol” coubera, desde sempre, a representação corporada de Zacarias para fora, junto aos demais assentamentos, povoados ou bairros, dentro ou fora do Município, graças à sua participação no circuito de competições característico das populações de baixa renda, no âmbito da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
     O CECLAZ, em contrapartida, parecia voltado, não só para a esfera pública, no que tocava às autoridades e “amigos da área” (pessoas notáveis passíveis de cooptação), como também para dentro do povoado, com a pretensão, mais ou menos explícita, de regular e disciplinar o uso do espaço na Zacarias 45. Desse modo, transparecia a preocupação específica das mulheres, cuja liderança, embora menos visível de imediato, tinha peso considerável, na medida em que eram capazes de melhor perceber as influências da mudança social sobre a esfera familiar. A outra grande preocupação dessa liderança feminina era a de unificar as iniciativas de contestação jurídica do avanço da Companhia, por exemplo.
     O ano de 1985 tornaria possível, finalmente, juntar as duas vertentes a propósito de um projeto de extensão em torno do tema “Meio Ambiente e Gestão Comunitária: problemas de educação ambiental no litoral fluminense/Maricá” 46 , que identificou como críticas, para os

45 Convém assinalar que o CECLAZ encontrava alguma resistência dentro da própria "comunidade", pois sua formalização havia sido proposta por uma "pessoa de fora", que vivia maritalmente com um zacarieiro e residia em Barra de Maricá, onde tinha um hotel. Sobre o envolvimento das mulheres nos processo de mudança e no “movimento social" em Zacarias, consulte-se Duque Estrada, 1992. 
46 Projeto de extensão universitária financiado pela SEPS/MEC e executado pelo PATAE/UFF, em 1985/86. Participavam do projeto, os colegas Arno Vogel (Deptº de Antropologia) e Renato Lessa (Deptº de Ciência Politica), ambos do ICHF/UFF. Completavam a equipe, como auxiliares de pesquisa, os acadêmicos 

moradores de Zacarias, duas questões - a da pesca e a da posse da terra, suscitando, respectivamente, o envolvimento dos homens e das mulheres.
     Uma feliz coincidência deu a este projeto uma amplitude imprevista. Em meados de 1985, a Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (FEEMA), foi encarregada, juntamente com a Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana (FUNDREM) e a Secretaria de Estado de Obras e Meio Ambiente (SOMA), de elaborar um projeto de regulamentação da Área de Proteção Ambiental (APA) de Maricá. Ao mesmo tempo, entrava em vigor o Plano de Desenvolvimento Urbano de Maricá 47.
     Surgiu, então, de parte dos órgãos governamentais, o interesse numa articulação do seu staff técnico com as lideranças locais através da equipe do projeto SEPS/MEC-UFF. A partir daí, desenvolveu-se um processo de cooperação, compreendendo reuniões de trabalho das equipes técnicas da UFF e da Divisão de Dinâmica de Ecossistemas da FEEMA, visitas a campo, encontros com representantes comunitários, contatos com as instâncias políticas municipais (Prefeitura e Câmara de Vereadores) e assim por diante.
     Foi mesmo possível reunir, no “Seminário de Metodologia para Estudos de Lagunas”, todo o espectro de técnicos que, na época, estudavam a região; ou seja, profissionais das áreas de antropologia (UFF/UFRJ), hidrologia (SERLA), ictiofauna (FEEMA), recursos pesqueiros (UFRJ), geo-química e hidro-química (UFF), botânica e zoologia (FEEMA, UFF, UFRJ e UERJ). Ao mesmo evento compareceram representantes das diferentes associações de moradores e amigos de Maricá.
     Essas articulações inter-institucionais foram bastante favorecidas pela posição que eu ocupava, na época, como diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro 48. Igualmente propícia, neste sentido, foi a grande efervescência de políticas públicas voltadas para o atendimento das populações de baixa-renda, a exemplo dos programas “Cada Família um Lote” e “Uma Luz na Escuridão”, entre outros 49. Last but not least , cabe mencionar a importância, nessa conjuntura, da quantidade e variedade dos projetos de pesquisa, em curso na região das lagunas e restingas de Maricá.

Antonio Carlos Alkmin dos Reis (UFF), Carmen Alkmin dos Reis (UFF), Denise Maria Duque Estrada(UFRJ), Jorge Luiz Sant`Anna dos Santos (UFF) e Mariana Ciavatta Pantoja Franco (UFRJ). 
47 Lei Nº 463, de 17/12/1984, transcrita no Correio de Maricá, 03/02 à 10/02/1985, aprovada pela Câmara Municipal, substituindo a Lei Municipal Nº 37 de 23/12/1977, que havia instituído o primeiro Plano Diretor de Maricá elaborado pela FUNDREM (SECPLAN/RJ), no segundo semestre de 1976. 
48 Departamento Geral da estrutura básica da Secretaria de Estado de Justiça/RJ, onde funcionava, também, a Comissão de Assuntos Fundiários, para cujas atividades muito contribuíram os técnicos do Arquivo Público, sobretudo no restabelecimento de cadeias sucessórias. 
49 O primeiro visava o reassentamento e a regularização da posse da terra, para famílias de baixa-renda. O segundo, voltado para o mesmo segmento, era um programa de eletrificação de favelas, loteamentos periféricos e bairros rurais. 

     A extensa discussão suscitada pela APA de Maricá trouxe, uma vez mais, à baila as duas dimensões críticas da ecologia do sistema lagunar - a permanência dos assentamentos de pescadores, em face do avanço da urbanização e o manejo das lagoas por intermédio de sua comunicação com o mar, seja através da barra permanente (Canal de Ponta Negra, por exemplo), seja graças à retomada das barras de emergência (ou “barras nativas”).
     Todo esse processo viria a culminar no 1º Cabildo Aberto de Maricá 50, onde a Câmara de Vereadores, acrescida de técnicos e representantes comunitários, debateu a questão ambiental no município. E, novamente, a polêmica girou em torno das mesmas questões: a ocupação desordenada da terra pelo capital imobiliário e seus efeitos sobre os assentamentos de pescadores e a pesca lagunar.
     O evento foi extraordinariamente instrutivo, em todos os sentidos. Revelou as posições dos diversos segmentos envolvidos com o difícil problema, para o Município, da compatibilização de seu desenvolvimento urbano e turístico com a manutenção de seu sistema de relações tradicional, impensável sem a pesca lagunar, isto é, sem os pescadores e sem a barra.
     Para a pesquisa de campo, porém, o Cabildo teve a virtude de evidenciar as interconexões e as linhas de clivagem do sistema, confirmando suas hipóteses sobre as complementaridades que o tornavam viável e operacional. Além disso, revelou o acerto de se haver tomado como focos da investigação etnográfica a casa (espaço, parentesco, genealogia) e a barra (saber naturalístico e manejo do sistema lagunar, voltado para a pesca).

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