Gente das Areias - Capítulo 2

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2. O Encontro Etnográfico
O saldo disso tudo, para mim, foi um ano de dificuldades. Vi-me constrangido a deixar o Pescart 7. Ainda no primeiro semestre de 1976, perdi também o meu posto na Universidade Federal Fluminense 8. Desempregado, com mulher grávida e uma filha de colo, sobrevivi graças à minguada, porém providencial bolsa de iniciação científica, que recebia como estagiário do Museu Nacional, onde passei a trabalhar.9
O inicio do curso de mestrado, nesse mesmo ano, dentro do próprio Museu Nacional, acabaria por levar-me ao Brasil Central, para pesquisas entre os Waurá, no âmbito do “Projeto Estudo Comparado de Rituais no Alto e Médio Xingú”, durante o ano de 1977 10. Ao retornar do meu segundo período de trabalho-de-campo, em março de 1978, soube que não havia verba suficiente para a continuidade do projeto, apenas iniciado. Nesse ínterim, embora absorvido pela etnografia alto-xinguana e pelo aprendizado dos princípios elementares da língua Waurá, não cheguei a desligar-me inteiramente da pesca e de

7 A exoneração do Coordenador do Programa (executor do convênio estabelecido entre o Ministério daAgricultura e a Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento/RJ) tornou insustentável a nossa posiçãocomo técnicos, submetendo-nos a todo tipo de chicanas, entre as quais o preenchimento constante de fichasdo Serviço Nacional de Informações (SNI).
8 Meu contrato de auxiliar-de-ensino fora alterado. Passei a professor-colaborador. Em seguida, este contratofoi interrompido por motivos político- ideológicos, a exemplo do que aconteceu com o de outros colegasnum verdadeiro processo de desarticulação do corpo docente do Departamento de Ciências Sociais da UFF.
9 Com os professores Luis de Castro Faria e Roberto Agusto da Matta, iniciei o estágio como bolsista,
do CNPq, graças à compreensão e generosidade do Coordenador do PPGAS, Prof. Roberto A. da Matta.
10 Coordenado pelos professores Anthony Seeger e Roberto A. da Matta. temas relativos ao litoral fluminense.

temas relativos ao litoral fluminense 11.  Talvez por esse motivo, o acaso tivesse voltado a sorrir-me, em 1978. A Secretaria Estadual de Educação e Cultura/RJ vinha-se interessando, há algum tempo, pelos “aspectos do folclore e da cultura popular” na baixada litorânea. A área focalizada, naquela ocasião, era a Região dos Lagos. Assim, bastou um encontro fortuito com a responsável pela implementação de pequenos projetos de pesquisa, que visavam documentar esse tipo de manifestação, para me colocar, outra vez, em contato com o assunto da pesca 12.Em fins de julho de 1978, retornei, pois, a Maricá, encarregado de executar o projeto “Pescadores: suas técnicas e seu artesanato”, que deveria contemplar, também, o conhecimento naturalístico associado às referidas técnicas e artesanato. Prazo de realização - dois meses 13. Como já conhecia a área, sabia que o desempenho das atividades pesqueiras no sistema lagunar dependia da abertura das chamadas barras-de-emergência, cuja interdição era, pois, identificada como um grave problema para o ofício da pesca. Por isso, tinha em mente sistematizar o máximo de informações sobre esse procedimento de manejo do ecossistema lagunar. Imaginava recolher, não só dados técnicos, mas inquirir, também, do significado que essas aberturas tinham, segundo o ponto de vista dos diferentes aldeamentos de pescadores, sobretudo os da restinga. Com essa perspectiva parti para o campo. Fui a Maricá, onde cheguei no começo de um dia invernal. Procurei a Prefeitura a fim de obter informações sobre a pesca na região. Como era, ainda, muito cedo, resolvi andar pelo mercado de peixe, situado logo em frente. Lá conheci “seu” Henrique, aliás, “Poeira”, como este velho pescador era também chamado.“Encontro trivial, de certo modo, como são, aparentemente todos os encontros cujo verdadeiro significado só se revelará mais tarde, no tecido de suas implicações...” 14. Percebo justas as palavras de Alejo Carpentier, quando considero, hoje, o evento, pois este foi, verdadeiramente,decisivo para pesquisa, conforme o tempo se encarregaria de demonstrar 15.

11 São desse período a palestra "Muxuango e Mocorongo: a construção de dois tipos sociais fluminense", no Curso “RJ - O Homem e a Terra” (INDC-UFF); e o trabalho de curso "A Itaipú dos Companheiros"(Problemas de Análise Etnológica - Rituais e Simbolismo. Prof. Roberto A. da Matta - PPGAS/MuseuNacional-UFRJ).
12 Tratava-se da professora e musicóloga Maria de Cáscia Nascimento Frade.
13 O órgão financiador era a Divisão de Folclore do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) do Departamento de Cultura da SEEC/RJ.
14 Carpentier, 1975:18.
15 Se o encontro com Henrique teve um quê de ser endipity, a escolha de Zacarias fora uma conseqüência da enquete feita no mercado. Desta resultara que, dentre as comunidades de pescadores, Zacarias abrigava um grupo inteiramente voltado para a pesca lagunar, além disso, dos mais numerosos, e, neste momento,submetido à pressão crescente do processo de urbanização, na restinga.

Através de “seu” Henrique fui ter, no dia seguinte, a um povoado da restinga, à beira da Lagoa de Maricá, a maior das sete que, interconectadas, formam o sistema lagunar do Município.Escondido entre a Ponta da Pedra e a Ponta do Capim, o casario de Zacarias amoldava-se à vegetação da restinga. A maioria absoluta das casas olhava para a lagoa, de costas para o mar, de cujos ventos fortes se protegiam, aninhadas por detrás dos cômoros da restinga. Era preciso aprender a distinguir nessa paisagem o lugar dos homens. Num primeiro instante custei a reconhecer as quarenta e uma (41) casas que formavam o aldeamento, tal era o modo pelo qual se engastavam na restinga, a ponto de quase se confundirem com ela. Durante não mais de quinze dias fui hóspede no rancho de “seu” Henrique. Um tempo relativamente curto, porém muito denso, quando estimo, agora, a intensidade e a produtividade do trabalho realizado nesse período. O ter permanecido nesse rancho-de-pesca pode ser considerado um incidente do trabalho-de-campo. Mais precisamente uma conseqüência da situação singular de meu anfitrião. Separado de sua mulher Brígida, que eu só viria a conhecer em outra ocasião, Henrique morava no rancho. Como seu hóspede, também eu passei a habitá-lo e, desse modo, fiquei de imediato envolvido pelas atividades e ritmos da pesca. Do rancho
podia presenciar as saídas e chegadas das canoas; e, com algum esfôrço e as necessárias explicações de Henrique, vislumbrar, à distância, as fainas das pescarias. Além disso, no entanto, toda a atmosfera do
rancho respirava pesca. O fato de não mais pescar não tornava “Poeira” menos interessado no assunto. Ao contrário, imerso ainda em suas rotinas de dono-de-pescaria e estimulado pelas minhas perguntas sobre técnicas e conhecimentos necessários à pesca, discorria longa e animadamente sobre esses temas. Embora lhes faltasse uma certa formalização, como no caso dos “seminários teológicos” de Turner com Muchona e Winston 16, ou das entrevistas de Griaule com Ogotemmeli 17, nossas conversações tiveram o mesmo caráter pedagógico. Todos os tópicos de algum modo relevantes para o assunto foram objeto de exposições prolongadas. Não havia hora certa para esses diálogos instrutivos. Quando Henrique se dedicava a alguma tarefa relacionada com a pescaria tratava, ao mesmo tempo, de expor, circunstanciadamente, as informações pertinentes à mesma.

16 Cf. Victor W. Turner "Muchona the Hornet, Interpreter of Religion" (Northern Rodhesia),
in Casagrande (ed.) 1964:333-555).
17 Cf. Marcel Griaule, Dieu D`Eau, entretiens avec Ogotemmeli (1966).

Valia-se do mesmo discurso processual 18 quando me surpreendia envolvido com algum afazer vinculado à atividade pesqueira. O ponto alto dessa iniciação, entretanto, eram os serões no rancho. Às vezes, em companhia de outros (Benjamin, Marcos), ou, quando já era mais tarde, só nós dois, a conversa estendia-se, noite a fora e madrugada a dentro. Nessas ocasiões, estimulados pelo tema (e pela cachaça), os espíritos se animavam. Sobretudo “Poeira”, na sua condição de pescador emérito,discorria, então, com argúcia, vivacidade e abrangência sobre a lagoa, as estações do ano, os ventos e as marés, os ciclos da lua, os peixes e as pescarias, os petrechos do ofício, as constelações do firmamento, a restinga, as demais lagoas, os outros assentamentos pesqueiros, as casas do povoado, as relações dos habitantes, seus parentescos, conflitos, “questões” e costumes... e assim por diante, interminavelmente. Creio, vez por outra, ter caído no sono, enquanto meu anfitrião ainda falava. Dentre os temas preferidos, voltava, constantemente, um, que já tinha despertado minha atenção na oportunidade do primeiro encontro - a abertura da barra. Só que, agora, vinha associado a uma outra dimensão, não menos significativa, de suas vidas - a moradia. Para os habitantes de Zacarias, a forma corrente de atestar sua vinculação àquela área da restinga, consistia na referência obrigatória à casa. Não a qualquer casa, mas a algumas em particular, que ancoravam no tempo o pequeno povoado. Essas casas, enquanto marcos históricos de ocupação da restinga, pareciam legitimar a presença, na Praia de Zacarias, de toda a comunidade. Assim, a memória do povoado podia ser reconstituída com uma simples alusão ao copiar de uma casa centenária. O desenvolvimento de um ciclo doméstico reificava-se nos cômodos sob a égide da mesma cumeeira. As casas, portanto, contavam uma história. A partir delas era possível remontar no tempo, desfiar o rosário das gerações, recuperar as alianças do parentesco, rememorar nomes, datas, episódios e querelas. Diante disso, minha atenção foi se deslocando, pouco a pouco, para a densidade do sentido que meus interlocutores atribuiam a acontecimentos tais como a abertura de uma barra, a construção de uma casa (ou sua demolição), a sucessão de uma herança e, com ela, a multiplicação ou dispersão de um patrimônio. E quanto às motivações dessas eventualidades, sempre dramáticas, não era necessário procurá-las muito longe. Estavam logo ali sob a forma de uma estrada que, abrindo caminho no friso litorâneo, progredia arrasando a vegetação da restinga e, quando necessário, passando por cima das casas, como se fosse difícil separá-las da paisagem.

18 Discurso descritivo que procede por etapas, articulando-as, em seqüência, para dar a idéia de um todo que é, por sua vez, um procedimento (técnico, ritual, etc).

Não era, pois, sem razão que, nos fins de tarde, quando as canoas estavam de volta, Henrique e os seus companheiros e amigos retornavam, sempre, ao problema da estrada, das casas e da barra. Nessas ocasiões, pareciam fazer questão da minha presença. Insistiam em ver registradas todas as suas observações sobre esses temas. Percebi, então, que não estavam apenas conversando comigo. O tempo todo formulavam denúncias. Lembro até que de uma feita cheguei a desligar o gravador, temendo complicar a nossa situação pelo simples registro de suas queixas. Meu temor não era infundado. Poucos dias antes, um oficial de justiça, acompanhado de policiais militares, cometera atos de violência no povoado. Casas estavam sob ameaça de demolição e seus moradores sob a mira de armas de fogo. Tais arbitrariedades contavam, segundo eles, com a conivência da administração municipal. A nuvem de poeira levantada pelas máquinas, que trabalhavam no extremo do assentamento, junto à Ponta da Pedra, impregnava de barro as roupas nos varais. Tensão e desalento haviam tomado conta do lugar. Sobre quaisquer veleidades de protesto, pesava a pechada subversão. E foi com esse fantasma, tão comum naquela época, que precisei conviver, durante todos os dias desse segundo encontro. Apesar disso, posso reconhecê-lo, para além de todos os constrangimentos políticos, como um encontro propriamente etnográfico. Nessa condição representou a primeira etapa do meu trabalho-de-campo e serviu como ponto de partida para todos os encontros subseqüentes. Por isso, vale a pena ocupar-se dele, ainda que de forma esquemática.

Continua amanhã.

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