26/10/2011 - À partir de hoje o Itaipuaçu Site, reproduzirá, através de capítulos, a história de um importante fato trágico ambiental ocorrido em Maricá por conta da ganância e ambição de políticos, face à interesses imobiliários na região.
Fruto de vinte anos de pesquisa, o livro de autoria de Marco Antonio da Silva Mello e Arno Vogel revela a história do povoado de Zacarias, bem como a resistência dos pescadores face à especulação imobiliária e aos problemas sociais e ambientais decorrentes da crise da pesca artesanal, nas lagoas de Maricá. Gente das Areias parte das notas dos viajantes do século XIX, passando pelas políticas públicas do saneamento, no Brasil, para tratar do complexo manejo do ecossistema lacustre, graças às aberturas sazonais das "barras nativas", grande rito de semeadura da "lavoura do pescador". Tudo isto, no contexto de um drama social denominado a "luta do tostão contra o milhão", travada entre os pescadores da Praia de Zacarias e o empreendimento imobiliário, configurado no projeto da Cidade de São Bento da Lagoa. Casa, família e parentesco, constituem, neste sentido, uma dimensão etnográfica estratégica para a compreensão das motivações implicadas neste conflito sócio-ambiental. Com apresentação de farto material iconográfico - fotos, documentos, diagramas e mapas - o livro é resultado de uma cuidadosa investigação etnográfica dos dois antropólogos, vazada numa linguagem que agradará não apenas aos estudiosos do tema, mas também ao público em geral.
Desejamos a todos uma boa leitura!
1. A Grande Mortandade
O ano de 1975 foi trágico para Maricá. Aos vinte e oito de agosto, fria manhã de inverno, a lagoa despertou coberta de peixes mortos. Quando o sol terminou de dissipar a névoa e seus raios multiplicaram as reverberações prateadas em toda a superfície, como se esta não fosse mais do que um imenso espelho estilhaçado, os pescadores tiveram a certeza de que o espectro da fome tinha começado a rondar. Não se enganavam. Poucos dias depois a situação era calamitosa. Os jornais do Rio de Janeiro e Niterói mencionaram armazéns saqueados. A administração do Município apelou ao Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e à Fundação Estadual de Engenhariado Meio Ambiente (FEEMA). Os próprios pescadores fizeram um abaixo assinado que entregaram à Colônia Z-7, sediada em Itaipú (Niterói) solicitando providências urgentes. Esse pedido de socorro foi encaminhado à Federação das Colônias de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro que, por sua vez, resolveu dirigir-se à Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento onde funcionava, em convênio com o Ministério da Agricultura, o Programa de Assistência à Pesca Artesanal (Pescart-RJ). O meu encontro com Maricá deu-se, então, por motivos profissionais, pois integrava a equipe destacada pelo Pescart para avaliar a extensão e os efeitos da grande mortandade de peixes nas aldeias de pescadores situadas na orla da Lagoa. O grupo-tarefa, composto por cerca de quinze pessoas, compreendia geógrafos, agrônomos, veterinários, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos¹. Tratava-se de uma equipe constituída há pouco mais de seis meses e treinada sob a minha supervisão. Esta era, dada a premência da crise, sua primeira oportunidade de ação conjunta. As grandes linhas dessa intervenção merecem relato, nem tanto pelos seus efeitos, mas por tudo que nos permitiu descobrir a respeito da pesca, dos pescadores e de suas lagoas.
¹ Dos antropólogos, Elina da Fonte Pessanha (1977) e Roberto Kant de Lima (1978) viriam, mais tarde, a dedicar suas teses de Mestrado a temas relacionados com a pesca na praia de Itaipú, Niterói/RJ.
1.1 Crônica de uma intervenção fracassada
O cheiro forte de toneladas de peixe em vias de apodrecer impregnava toda a região de Maricá. O ambiente era sombrio. A consciência da tragédia encontrava-se estampada na face de cada qual, quando chegamos à localidade de São José do Imbassaí, na manhã de uma sexta-feira, seis de setembro, véspera do Feriado Nacional, e percebemos, de imediato, que era necessário fazer com urgência um censo da população diretamente afetada pelo desastre.
A rapidez desse levantamento dependeria do prazo em que a notícia de nossa presença e objetivos pudesse alcançar os diversos assentamentos da lagoa. Esta era nossa grande preocupação quando nos reunimos diante de um velho armazém de São José do Imbassaí. Enquanto pensávamos no caso, ouvimos de um dos presentes que o interventor da Colônia Z-7 estava convocando todos os pescadores de Maricá, a comparecer aos postos do Pescart/RJ. Para tanto, valia-se de programa radiofônico com larga audiência, sobretudo no interior do Estado. O problema ficava, assim, em parte resolvido. Mas, além de não nos fiarmos inteiramente no rádio, tínhamos necessidade de distribuir o grupo de técnicos pelos povoados que, segundo indicações locais, melhor se prestassem à realização do levantamento. Com esse intuito, mantive diálogo com um pescador e, ali mesmo, em frente ao armazém, começou a esboçar-se, no chão, o mapeamento das aldeias e sua localização no perímetro das diferentes lagoas que concorrem para formar o sistema lagunar. Outro pescador aproximou-se e os dois começaram a desfiar um rosário de nomes de lugares. Como não os conhecesse, hesitava em plotá-los na improvisada carta topográfica. Diante disso, um deles esboçou com rapidez todos os contornos e meandros do conjunto. As referências foram sendo assinaladas, sem titubear, por gordos pontos feitos com uma vareta. A boa disposição dos instrutores, permitiu-me convencê-los a passarem a limpo o desenho, numa folha de caderno que lhes forneci com essa finalidade. Fiquei ali de cócoras alguns minutos, conversando. Enquanto isso, um colega, ia tomando providências, baseado nas informações que os dois pescadores, com o auxílio do grupo que se formara, iam fornecendo. A primeira delas foi sugerir o envio de mensageiros, que a pé, de bicicleta, ou em suas canoas, deveriam levar os detalhes da nossa convocatória aos lugares escolhidos, o que foi feito com bastante presteza pelos próprios pescadores. A segunda medida foi a imediata instalação dos postos de atendimento improvisados nas aldeias cuja situação tornara propícias aos procedimentos do censo populacional por grupo doméstico atingido. Apesar das precauções tomadas desde o início, no entanto, isto foi mais difícil do que parecia à primeira vista. Embora todos os pescadores da região sofressem os efeitos desagregadores da mortandade dos peixes, os grupos dos diferentes povoados pareciam não ver a situação sob o mesmo ângulo. A avaliação que faziam buscava estabelecer o que realmente tinha sido afetado pelo evento. Assim começaram a se evidenciar as linhas de clivagem do sistema de relações. Para São José do Imbassaí, por exemplo, Ponta Negra não deveria ser incluída nas nossas previsões de distribuição emergencial de gêneros de primeira necessidade. De modo a evitar os desentendimentos resultantes dessas dissensões internas, em cada posto, moradores do lugar deveriam ajudar no cadastramento. O controle do registro estava, pois, afeto aos próprios atores.
Durante a manhã, e grande parte da tarde, enquanto nossos técnicos faziam o levantamento projetado, percorri as margens da lagoa, com um companheiro de equipe, procurando avaliar a extensão dos danos causados². Á medida que íamos seguindo, de um lugar para outro, ouvíamos as versões locais sobre o desastre. Sequer uma delas deixava de referir-se à barra de emergência. Segundo o consenso geral, não se podendo mais abri-la, pois, no lugar apropriado para tanto a Prefeitura municipal construíra uma estrada, tornava-se impossível renovar as águas da lagoa. A esse fato se atribuía não só a escassez do peixe em tempos recentes, como também a atual mortandade que acabara por aniquilar o pouco restante. Os comentários sobre a conjuntura da pesca na lagoa traduziam um profundo desalento. A maioria dos pescadores acreditava não poder resistir por muito mais tempo às investidas da especulação imobiliária, que vinha num crescendo, e à qual estaria vinculado o advento da referida estrada. Um velho pescador, visivelmente emocionado, mencionou a batalha judicial que vinham travando, há quase três décadas, contra Lúcio Thomé Feteira, poderoso empresário associado a um grande cacique da política fluminense, diziam, e que reivindicava a propriedade de toda a área compreendida pelos assentamentos pesqueiros. Outro pescador fez um relato profuso da sua vida nos últimos meses. Há tempo não conseguia mais arrancar o parco sustento de sua família às águas da lagoa de Maricá. Por isso tinha sido forçado a pescar na lagoa de Piratininga, em Niterói. E como ele, muitos outros, levando suas canoas e redes e, com elas, a esperança de sobreviver. Logo, no entanto, surgiram conflitos com os confrades desta lagoa. O resultado foram redes rasgadas, insultos e ameaças de ambas as partes. Com isso espalhou-se a notícia da penúria de Maricá³.
O próprio fato dessa migração, que de resto não ficou limitada à Piratininga, pois outros pescadores foram tentar a sorte ainda mais longe em Saquarema e até na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, teria valido como o prenúncio de um inverno de fome na restinga de Maricá. Mas disso sabiam apenas aqueles homens desgarrados dormitando à beira de lagoas estranhas, falando com tristeza dos dias passados longe de casa -”jogados pelo mato, largados como bicho”
² Tratava-se de Roberto Kant de Lima, também ele executor de projetos do PESCART/RJ.
³ O incidente foi registrado no campo por Elina da Fonte Peçanha (1977:66): “Um fato ocorrido durante nosso trabalho em Itaipu, no fim do inverno de 1975, exemplifica bem isso. Alguns pescadores do município vizinho de Maricá, premidos pela ausência de peixes nas assoreadas lagoas locais, colocaram redes de emalhar na lagoa de Piratininga. Os pescadores de Itaipu e Piratininga, correndo o risco de serem punidos pelo órgão fiscalizador oficial, retiraram as redes durante a madrugada e abandonaram-nas na varanda do prédio da Colônia, em Itaipu (que tem jurisdição sobre Maricá), com um bilhete em que ameaçavam de destruição as próximas redes encontradas. Manifestaram, assim, sua reação ao uso da lagoa -aparentemente ociosa, pois há pouquíssimos pescadores em Piratininga e poucos são os de Itaipu que lá pescam, eventualmente, mas que, em virtude do próprio assoreamento, oferece fracas oportunidades de pesca - por profissionais como eles, membros da própria Colônia, mas estranhos ao grupo que ali atua”.
Seus ressentimentos tinham, no entanto, uma origem ainda mais longínqua no tempo. Remontavam à época em que, graças a uma manobra do governo estadual, gente de Guaratiba, sem levar em conta a situação dos demais aldeamentos de pescadores da lagoa de Maricá, tinha apoiado a abertura do canal de Ponta Negra, obra crítica do projeto de saneamento dessa região da baixada litorânea fluminense, no final dos anos quarenta. Aos seus olhos, a barra permanente constituída pelo canal de Ponta Negra, estava associada ao fracasso da pesca na região. Quando os pescadores de Guaratiba, Barra de Maricá, São José do Imbassaí, Praia Grande, Saco da Lama e Zacarias, se referiam a esse fato, constatavam com amargura que, por terem cedido aos desejos de seus vizinhos, haviam se tornado cúmplices da decadência da pesca e, portanto, do seu próprio empobrecimento. O canal tinha sido para eles um autêntico presente de grego. Nos termos do modo de vida da região, foi uma escolha desastrosa para todos, afetando até mesmo os que mais tinham esperado beneficiar-se com a sua abertura. Recebido, inicialmente, como uma dádiva, esse investimento trouxe consigo a discórdia, envenenando as relações entre os povoados, acentuando diferenças, suscitando acusações e disseminando, entre todos, um clima de mútua suspeição, cujos indícios encontramos por toda a parte. O declínio da pesca em Maricá começara, pois, há muitos anos atrás. Para convencer-se disso bastava olhar os monturos malcheirosos que começaram a se juntar nas margens da lagoa. Neles não se encontraria qualquer vestígio da passada glória pesqueira da região. Não havia camarões, robalos, paratis, corvinas, tainhas, ou exemplares do enorme bagre-chora 4. Ao invés disso, amontoavam-se os acarás, as savelhas, os bagres-veludo e os mandís - todas elas espécies de pouco ou nenhum valor. Até o começo da tarde o cadastramento, iniciado pela manhã, fora concluído. Seus resultados haveriam de mostrar que as maiores concentrações de pescadores da região estavam nas localidades de Zacarias, Barra de Maricá e Guaratiba (191 pescadores, com 165 dependentes) e do povoado de Araçatiba (10 pescadores com 52 dependentes). O censo conseguiu, assim, atingir 240 famílias, num total de 1.305 pessoas, número que compreendia os 240 chefes de família e seus 1.065 dependentes, - com uma média de aproximadamente 05 dependentes por unidade doméstica. Novamente reunido, o grupo-tarefa assistiu, então, a abertura da
barra de emergência. Junto ao cômoro do mar, uma escavadeira procedia à abertura do canal. Repórteres,auxiliares de gabinete e engenheiros; o Prefeito de Maricá, bem como alguns vereadores, além dos simples curiosos de todos os eventos públicos, acompanhavam a iniciativa, que contava com a presença do próprio Governador.5
Os pescadores, em pequenos grupos, presenciavam toda essa movimentação. Bastava observar-lhes a postura, para perceber sua descrença que acabou, também, por se traduzir em palavras. Céticos, limitaram-se, inicialmente, a murmurar. De súbito, dois deles, encorajados por técnicos do grupo-tarefa, aproximaram-se e, do alto da duna, fizeram abertamente suas ponderações. Aquela barra de nada adiantaria, afirmaram. Depois dela continuariam como antes, sem poder tirar sustento da lagoa, ainda por muito tempo. O escoadouro era pequeno demais e não teria nenhuma eficácia. Nesse ponto o porta-voz foi secundado pelo então Coordenador do Programa de Assistência à Pesca Artesanal/RJ que se estendeu sobre o assunto. Cavado na duna e de dimensões insuficientes, o canal não tardaria a ser obstruído pelo vento ou pela própria arrebentação. Não bastava estabelecer uma comunicação da lagoa com o mar. Uma abertura de barra
era muito mais. O diálogo subseqüente que se seguiu foi áspero. O Governador, sentindo-se atacado, exigiu do técnico que declinasse as qualificações em que se apoiava sua interferência. Ao saber de quem se tratava, recomendou ao interlocutor que se restringisse à sua área de competência. Não se contendo, o técnico replicou que, além de coordenar o Programa, era geógrafo e nessa condição julgava seu comentário pertinente 6. O chefe do executivo fluminense, considerando-o recalcitrante, afastou-se do local sem lhe dar mais ouvidos, recomendando, porém, a um oficial de seu Gabinete registrar a ocorrência do que lhe pareceu uma provocação. Enquanto a escavadeira mecânica e o trator terminavam seu trabalho, os caminhões da limpeza pública, um após outro, iam recolhendo toneladas de peixe em estado de putrefação das margens da lagoa, para despejá-las no aterro sanitário do Município de Maricá. A tarde começava a declinar quando se completou a abertura da barra de emergência. Um filete de água da lagoa escorreu penosamente para o mar. Satisfeita, a comitiva do governo considerou a tarefa encerrada e deixou Maricá. Em companhia de alguns pescadores, seguimos para um pequeno armazém, entre Barra de Maricá e Zacarias, onde os comentários sobre o acontecimento prosseguiram ainda por cerca de duas horas. A tônica foi unanime: o que se tinha visto havia sido uma farsa. Para acentuar esse fato nossos interlocutores descreviam com ênfase e detalhes, a
abertura de barra como ela deveria ser. Citavam o exemplo de barras anteriores, rememorando episódios, datas, dimensões e efeitos. Quanto à barra cuja abertura tínhamos acabado de presenciar, profetizavam sua total inutilidade. Justificavam sua omissão em face do trabalho, anunciando o próximo fechamento do canal, que tinha sido aberto sem levar em conta seus conhecimentos e ponderações. Ao cair da noite, também nós deixamos Maricá. Não sem antes voltar ao local onde se tinham desenrolado os acontecimentos daquela tarde. Vimos, então, que a barra estava em fase final de assoreamento. Dentro de poucas horas estaria completamente fechada, interrompendo-se a precária comunicação entre o mar e a lagoa, que há pouco tinha dado ao Governo o sentimento de ter cumprido sua missão. Nesse momento, porém, ainda não podíamos antecipar as conseqüências que toda essa farsa - pois, sem dúvida, foi esta a natureza do evento de que havíamos participado - teria no futuro, tanto para os pescadores de Maricá quanto para nós mesmos enquanto técnicos do Governo.
4 Tachysurus grandicassis
(Val.), também conhecido como bagre-branco
5 Tratava-se do Alte. Faria Lima, nomeado pelo Pres. Geisel para governar o Estado do Rio de Janeirodurante o período correspondente ao primeiro mandato decorrido sob a égide da recente fusão com o antigo Estado da Guanabara (1974-1978).
6 Dario Castelo, além de coordenar a equipe técnica do Pescart no Rio de Janeiro, era professor do Institutode Geo-Ciências da Universidade Federal Fluminense, posição que ocupa ainda hoje.
Continua amanhã (27).
Fruto de vinte anos de pesquisa, o livro de autoria de Marco Antonio da Silva Mello e Arno Vogel revela a história do povoado de Zacarias, bem como a resistência dos pescadores face à especulação imobiliária e aos problemas sociais e ambientais decorrentes da crise da pesca artesanal, nas lagoas de Maricá. Gente das Areias parte das notas dos viajantes do século XIX, passando pelas políticas públicas do saneamento, no Brasil, para tratar do complexo manejo do ecossistema lacustre, graças às aberturas sazonais das "barras nativas", grande rito de semeadura da "lavoura do pescador". Tudo isto, no contexto de um drama social denominado a "luta do tostão contra o milhão", travada entre os pescadores da Praia de Zacarias e o empreendimento imobiliário, configurado no projeto da Cidade de São Bento da Lagoa. Casa, família e parentesco, constituem, neste sentido, uma dimensão etnográfica estratégica para a compreensão das motivações implicadas neste conflito sócio-ambiental. Com apresentação de farto material iconográfico - fotos, documentos, diagramas e mapas - o livro é resultado de uma cuidadosa investigação etnográfica dos dois antropólogos, vazada numa linguagem que agradará não apenas aos estudiosos do tema, mas também ao público em geral.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Gente das Areias
1. A Grande Mortandade
O ano de 1975 foi trágico para Maricá. Aos vinte e oito de agosto, fria manhã de inverno, a lagoa despertou coberta de peixes mortos. Quando o sol terminou de dissipar a névoa e seus raios multiplicaram as reverberações prateadas em toda a superfície, como se esta não fosse mais do que um imenso espelho estilhaçado, os pescadores tiveram a certeza de que o espectro da fome tinha começado a rondar. Não se enganavam. Poucos dias depois a situação era calamitosa. Os jornais do Rio de Janeiro e Niterói mencionaram armazéns saqueados. A administração do Município apelou ao Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e à Fundação Estadual de Engenhariado Meio Ambiente (FEEMA). Os próprios pescadores fizeram um abaixo assinado que entregaram à Colônia Z-7, sediada em Itaipú (Niterói) solicitando providências urgentes. Esse pedido de socorro foi encaminhado à Federação das Colônias de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro que, por sua vez, resolveu dirigir-se à Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento onde funcionava, em convênio com o Ministério da Agricultura, o Programa de Assistência à Pesca Artesanal (Pescart-RJ). O meu encontro com Maricá deu-se, então, por motivos profissionais, pois integrava a equipe destacada pelo Pescart para avaliar a extensão e os efeitos da grande mortandade de peixes nas aldeias de pescadores situadas na orla da Lagoa. O grupo-tarefa, composto por cerca de quinze pessoas, compreendia geógrafos, agrônomos, veterinários, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos¹. Tratava-se de uma equipe constituída há pouco mais de seis meses e treinada sob a minha supervisão. Esta era, dada a premência da crise, sua primeira oportunidade de ação conjunta. As grandes linhas dessa intervenção merecem relato, nem tanto pelos seus efeitos, mas por tudo que nos permitiu descobrir a respeito da pesca, dos pescadores e de suas lagoas.
¹ Dos antropólogos, Elina da Fonte Pessanha (1977) e Roberto Kant de Lima (1978) viriam, mais tarde, a dedicar suas teses de Mestrado a temas relacionados com a pesca na praia de Itaipú, Niterói/RJ.
1.1 Crônica de uma intervenção fracassada
O cheiro forte de toneladas de peixe em vias de apodrecer impregnava toda a região de Maricá. O ambiente era sombrio. A consciência da tragédia encontrava-se estampada na face de cada qual, quando chegamos à localidade de São José do Imbassaí, na manhã de uma sexta-feira, seis de setembro, véspera do Feriado Nacional, e percebemos, de imediato, que era necessário fazer com urgência um censo da população diretamente afetada pelo desastre.
A rapidez desse levantamento dependeria do prazo em que a notícia de nossa presença e objetivos pudesse alcançar os diversos assentamentos da lagoa. Esta era nossa grande preocupação quando nos reunimos diante de um velho armazém de São José do Imbassaí. Enquanto pensávamos no caso, ouvimos de um dos presentes que o interventor da Colônia Z-7 estava convocando todos os pescadores de Maricá, a comparecer aos postos do Pescart/RJ. Para tanto, valia-se de programa radiofônico com larga audiência, sobretudo no interior do Estado. O problema ficava, assim, em parte resolvido. Mas, além de não nos fiarmos inteiramente no rádio, tínhamos necessidade de distribuir o grupo de técnicos pelos povoados que, segundo indicações locais, melhor se prestassem à realização do levantamento. Com esse intuito, mantive diálogo com um pescador e, ali mesmo, em frente ao armazém, começou a esboçar-se, no chão, o mapeamento das aldeias e sua localização no perímetro das diferentes lagoas que concorrem para formar o sistema lagunar. Outro pescador aproximou-se e os dois começaram a desfiar um rosário de nomes de lugares. Como não os conhecesse, hesitava em plotá-los na improvisada carta topográfica. Diante disso, um deles esboçou com rapidez todos os contornos e meandros do conjunto. As referências foram sendo assinaladas, sem titubear, por gordos pontos feitos com uma vareta. A boa disposição dos instrutores, permitiu-me convencê-los a passarem a limpo o desenho, numa folha de caderno que lhes forneci com essa finalidade. Fiquei ali de cócoras alguns minutos, conversando. Enquanto isso, um colega, ia tomando providências, baseado nas informações que os dois pescadores, com o auxílio do grupo que se formara, iam fornecendo. A primeira delas foi sugerir o envio de mensageiros, que a pé, de bicicleta, ou em suas canoas, deveriam levar os detalhes da nossa convocatória aos lugares escolhidos, o que foi feito com bastante presteza pelos próprios pescadores. A segunda medida foi a imediata instalação dos postos de atendimento improvisados nas aldeias cuja situação tornara propícias aos procedimentos do censo populacional por grupo doméstico atingido. Apesar das precauções tomadas desde o início, no entanto, isto foi mais difícil do que parecia à primeira vista. Embora todos os pescadores da região sofressem os efeitos desagregadores da mortandade dos peixes, os grupos dos diferentes povoados pareciam não ver a situação sob o mesmo ângulo. A avaliação que faziam buscava estabelecer o que realmente tinha sido afetado pelo evento. Assim começaram a se evidenciar as linhas de clivagem do sistema de relações. Para São José do Imbassaí, por exemplo, Ponta Negra não deveria ser incluída nas nossas previsões de distribuição emergencial de gêneros de primeira necessidade. De modo a evitar os desentendimentos resultantes dessas dissensões internas, em cada posto, moradores do lugar deveriam ajudar no cadastramento. O controle do registro estava, pois, afeto aos próprios atores.
Durante a manhã, e grande parte da tarde, enquanto nossos técnicos faziam o levantamento projetado, percorri as margens da lagoa, com um companheiro de equipe, procurando avaliar a extensão dos danos causados². Á medida que íamos seguindo, de um lugar para outro, ouvíamos as versões locais sobre o desastre. Sequer uma delas deixava de referir-se à barra de emergência. Segundo o consenso geral, não se podendo mais abri-la, pois, no lugar apropriado para tanto a Prefeitura municipal construíra uma estrada, tornava-se impossível renovar as águas da lagoa. A esse fato se atribuía não só a escassez do peixe em tempos recentes, como também a atual mortandade que acabara por aniquilar o pouco restante. Os comentários sobre a conjuntura da pesca na lagoa traduziam um profundo desalento. A maioria dos pescadores acreditava não poder resistir por muito mais tempo às investidas da especulação imobiliária, que vinha num crescendo, e à qual estaria vinculado o advento da referida estrada. Um velho pescador, visivelmente emocionado, mencionou a batalha judicial que vinham travando, há quase três décadas, contra Lúcio Thomé Feteira, poderoso empresário associado a um grande cacique da política fluminense, diziam, e que reivindicava a propriedade de toda a área compreendida pelos assentamentos pesqueiros. Outro pescador fez um relato profuso da sua vida nos últimos meses. Há tempo não conseguia mais arrancar o parco sustento de sua família às águas da lagoa de Maricá. Por isso tinha sido forçado a pescar na lagoa de Piratininga, em Niterói. E como ele, muitos outros, levando suas canoas e redes e, com elas, a esperança de sobreviver. Logo, no entanto, surgiram conflitos com os confrades desta lagoa. O resultado foram redes rasgadas, insultos e ameaças de ambas as partes. Com isso espalhou-se a notícia da penúria de Maricá³.
O próprio fato dessa migração, que de resto não ficou limitada à Piratininga, pois outros pescadores foram tentar a sorte ainda mais longe em Saquarema e até na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, teria valido como o prenúncio de um inverno de fome na restinga de Maricá. Mas disso sabiam apenas aqueles homens desgarrados dormitando à beira de lagoas estranhas, falando com tristeza dos dias passados longe de casa -”jogados pelo mato, largados como bicho”
² Tratava-se de Roberto Kant de Lima, também ele executor de projetos do PESCART/RJ.
³ O incidente foi registrado no campo por Elina da Fonte Peçanha (1977:66): “Um fato ocorrido durante nosso trabalho em Itaipu, no fim do inverno de 1975, exemplifica bem isso. Alguns pescadores do município vizinho de Maricá, premidos pela ausência de peixes nas assoreadas lagoas locais, colocaram redes de emalhar na lagoa de Piratininga. Os pescadores de Itaipu e Piratininga, correndo o risco de serem punidos pelo órgão fiscalizador oficial, retiraram as redes durante a madrugada e abandonaram-nas na varanda do prédio da Colônia, em Itaipu (que tem jurisdição sobre Maricá), com um bilhete em que ameaçavam de destruição as próximas redes encontradas. Manifestaram, assim, sua reação ao uso da lagoa -aparentemente ociosa, pois há pouquíssimos pescadores em Piratininga e poucos são os de Itaipu que lá pescam, eventualmente, mas que, em virtude do próprio assoreamento, oferece fracas oportunidades de pesca - por profissionais como eles, membros da própria Colônia, mas estranhos ao grupo que ali atua”.
Seus ressentimentos tinham, no entanto, uma origem ainda mais longínqua no tempo. Remontavam à época em que, graças a uma manobra do governo estadual, gente de Guaratiba, sem levar em conta a situação dos demais aldeamentos de pescadores da lagoa de Maricá, tinha apoiado a abertura do canal de Ponta Negra, obra crítica do projeto de saneamento dessa região da baixada litorânea fluminense, no final dos anos quarenta. Aos seus olhos, a barra permanente constituída pelo canal de Ponta Negra, estava associada ao fracasso da pesca na região. Quando os pescadores de Guaratiba, Barra de Maricá, São José do Imbassaí, Praia Grande, Saco da Lama e Zacarias, se referiam a esse fato, constatavam com amargura que, por terem cedido aos desejos de seus vizinhos, haviam se tornado cúmplices da decadência da pesca e, portanto, do seu próprio empobrecimento. O canal tinha sido para eles um autêntico presente de grego. Nos termos do modo de vida da região, foi uma escolha desastrosa para todos, afetando até mesmo os que mais tinham esperado beneficiar-se com a sua abertura. Recebido, inicialmente, como uma dádiva, esse investimento trouxe consigo a discórdia, envenenando as relações entre os povoados, acentuando diferenças, suscitando acusações e disseminando, entre todos, um clima de mútua suspeição, cujos indícios encontramos por toda a parte. O declínio da pesca em Maricá começara, pois, há muitos anos atrás. Para convencer-se disso bastava olhar os monturos malcheirosos que começaram a se juntar nas margens da lagoa. Neles não se encontraria qualquer vestígio da passada glória pesqueira da região. Não havia camarões, robalos, paratis, corvinas, tainhas, ou exemplares do enorme bagre-chora 4. Ao invés disso, amontoavam-se os acarás, as savelhas, os bagres-veludo e os mandís - todas elas espécies de pouco ou nenhum valor. Até o começo da tarde o cadastramento, iniciado pela manhã, fora concluído. Seus resultados haveriam de mostrar que as maiores concentrações de pescadores da região estavam nas localidades de Zacarias, Barra de Maricá e Guaratiba (191 pescadores, com 165 dependentes) e do povoado de Araçatiba (10 pescadores com 52 dependentes). O censo conseguiu, assim, atingir 240 famílias, num total de 1.305 pessoas, número que compreendia os 240 chefes de família e seus 1.065 dependentes, - com uma média de aproximadamente 05 dependentes por unidade doméstica. Novamente reunido, o grupo-tarefa assistiu, então, a abertura da
barra de emergência. Junto ao cômoro do mar, uma escavadeira procedia à abertura do canal. Repórteres,auxiliares de gabinete e engenheiros; o Prefeito de Maricá, bem como alguns vereadores, além dos simples curiosos de todos os eventos públicos, acompanhavam a iniciativa, que contava com a presença do próprio Governador.5
Os pescadores, em pequenos grupos, presenciavam toda essa movimentação. Bastava observar-lhes a postura, para perceber sua descrença que acabou, também, por se traduzir em palavras. Céticos, limitaram-se, inicialmente, a murmurar. De súbito, dois deles, encorajados por técnicos do grupo-tarefa, aproximaram-se e, do alto da duna, fizeram abertamente suas ponderações. Aquela barra de nada adiantaria, afirmaram. Depois dela continuariam como antes, sem poder tirar sustento da lagoa, ainda por muito tempo. O escoadouro era pequeno demais e não teria nenhuma eficácia. Nesse ponto o porta-voz foi secundado pelo então Coordenador do Programa de Assistência à Pesca Artesanal/RJ que se estendeu sobre o assunto. Cavado na duna e de dimensões insuficientes, o canal não tardaria a ser obstruído pelo vento ou pela própria arrebentação. Não bastava estabelecer uma comunicação da lagoa com o mar. Uma abertura de barra
era muito mais. O diálogo subseqüente que se seguiu foi áspero. O Governador, sentindo-se atacado, exigiu do técnico que declinasse as qualificações em que se apoiava sua interferência. Ao saber de quem se tratava, recomendou ao interlocutor que se restringisse à sua área de competência. Não se contendo, o técnico replicou que, além de coordenar o Programa, era geógrafo e nessa condição julgava seu comentário pertinente 6. O chefe do executivo fluminense, considerando-o recalcitrante, afastou-se do local sem lhe dar mais ouvidos, recomendando, porém, a um oficial de seu Gabinete registrar a ocorrência do que lhe pareceu uma provocação. Enquanto a escavadeira mecânica e o trator terminavam seu trabalho, os caminhões da limpeza pública, um após outro, iam recolhendo toneladas de peixe em estado de putrefação das margens da lagoa, para despejá-las no aterro sanitário do Município de Maricá. A tarde começava a declinar quando se completou a abertura da barra de emergência. Um filete de água da lagoa escorreu penosamente para o mar. Satisfeita, a comitiva do governo considerou a tarefa encerrada e deixou Maricá. Em companhia de alguns pescadores, seguimos para um pequeno armazém, entre Barra de Maricá e Zacarias, onde os comentários sobre o acontecimento prosseguiram ainda por cerca de duas horas. A tônica foi unanime: o que se tinha visto havia sido uma farsa. Para acentuar esse fato nossos interlocutores descreviam com ênfase e detalhes, a
abertura de barra como ela deveria ser. Citavam o exemplo de barras anteriores, rememorando episódios, datas, dimensões e efeitos. Quanto à barra cuja abertura tínhamos acabado de presenciar, profetizavam sua total inutilidade. Justificavam sua omissão em face do trabalho, anunciando o próximo fechamento do canal, que tinha sido aberto sem levar em conta seus conhecimentos e ponderações. Ao cair da noite, também nós deixamos Maricá. Não sem antes voltar ao local onde se tinham desenrolado os acontecimentos daquela tarde. Vimos, então, que a barra estava em fase final de assoreamento. Dentro de poucas horas estaria completamente fechada, interrompendo-se a precária comunicação entre o mar e a lagoa, que há pouco tinha dado ao Governo o sentimento de ter cumprido sua missão. Nesse momento, porém, ainda não podíamos antecipar as conseqüências que toda essa farsa - pois, sem dúvida, foi esta a natureza do evento de que havíamos participado - teria no futuro, tanto para os pescadores de Maricá quanto para nós mesmos enquanto técnicos do Governo.
4 Tachysurus grandicassis
(Val.), também conhecido como bagre-branco
5 Tratava-se do Alte. Faria Lima, nomeado pelo Pres. Geisel para governar o Estado do Rio de Janeirodurante o período correspondente ao primeiro mandato decorrido sob a égide da recente fusão com o antigo Estado da Guanabara (1974-1978).
6 Dario Castelo, além de coordenar a equipe técnica do Pescart no Rio de Janeiro, era professor do Institutode Geo-Ciências da Universidade Federal Fluminense, posição que ocupa ainda hoje.
Continua amanhã (27).
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